Um General na Biblioteca

(Carla ScalaEjcveS) #1

Ottilia — Olhe bem. Pertinho, bem pertinho. O que está vendo?
Eu — Uma superfície granulosa, mosqueada, calombenta.
Ottilia — Passe entre um calombo e outro, entre um grão e outro, entre
uma veia e outra. Encontrará o portão de um jardim, com canteiros verdes e
piscinas límpidas. Eu estou lá no fundo.
Eu — Tudo o que toco é áspero, árido, frio.
Ottilia — Passe lentamente a mão pela superfície. É uma nuvem macia
como chantilly...
Eu — Tudo é uniforme, surdo, compacto...
Ottilia — Abra bem os olhos e os ouvidos. Ouça o fervilhar e o clarão da
cidade, janelas e vitrines iluminadas, e as buzinas e o carrilhão, e as pessoas
brancas e amarelas e pretas e vermelhas, vestidas de verde e azul e laranja e
açafrão.
Corinna — Fulgenzio! Onde você está?!
Agora eu já não podia me separar do mundo de Ottilia, da cidade que
também era nuvem e jardim. As flechas, aqui, em vez de irem retas faziam
muitas reviravoltas, longas linhas invisíveis que se emaranhavam e se
desembaraçavam, se enovelavam e enrolavam, mas no final sempre atingiam o
alvo, talvez um alvo diferente daquele que se esperava.
O fato estranho era o seguinte: quanto mais eu me dava conta de que o
mundo era complicado, acidentado, inextricável, mais me parecia que as coisas
que deviam realmente ser entendidas eram poucas e simples, e se eu as
entendesse tudo ficaria claro como as linhas de um desenho. Gostaria de dizer
isso a Corinna, ou a Ottilia, mas já fazia algum tempo que não as encontrava,
nem uma nem outra, e, mais um fato estranho, em meus pensamentos volta e
meia eu confundia uma com a outra.
Por muito tempo não me olhei mais no espelho. Um dia, por acaso, passando
diante de um espelho, vi o alvo, com todas as suas lindas cores. Tentei me pôr
de perfil, de três quartos: via sempre o alvo. — Corinna! — exclamei. — Estou
aqui, Corinna! Olhe: sou como você gostaria que eu fosse! — Mas depois pensei
que o que eu via no espelho não era só eu, mas também o mundo, portanto,
Corinna, eu devia procurá-la ali, entre aquelas linhas coloridas. E Ottilia?
Talvez Ottilia também estivesse ali, aparecendo e desaparecendo. Era Corinna
ou Ottilia que, se fixasse o alvo-espelho por muito tempo, eu via aparecer entre
os círculos concêntricos?
Às vezes tenho a impressão de encontrá-la, uma ou outra, no vaivém da
cidade, e a impressão de que ela quer me dizer alguma coisa, mas isso acontece
quando dois trens do metrô se cruzam correndo em direções opostas, e a
imagem de Ottilia — ou de Corinna? — vem ao meu encontro e escapa e é
seguida por uma série de rostos rapidíssimos, enquadrados pelas janelas como as

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