Um General na Biblioteca

(Carla ScalaEjcveS) #1

fique de fora, pois o que ficar de fora será como se nunca tivesse existido. E ao
mesmo tempo será sua tarefa agir, escrupulosamente, como se nunca tivesse
existido tudo aquilo que acabaria atrapalhando ou pondo na sombra outras coisas
mais essenciais, isto é, tudo aquilo que, em vez de aumentar a informação,
criaria uma desordem e um ruído inúteis. O importante é o modelo geral
formado pelo conjunto das informações, do qual poderão ser extraídas outras
informações que não fornecemos e que talvez não tenhamos. Em suma, não
dando certas informações damos mais do que daríamos dando-as. O resultado
final do nosso trabalho será um modelo em que tudo conta como informação,
mesmo o que não é. Só então se poderá saber, de tudo o que foi, o que é que
contava verdadeiramente, ou seja, o que é que existiu verdadeiramente, porque
o resultado final da nossa documentação será ao mesmo tempo o que é, foi e
será, e todo o resto não será nada.
É verdade que há momentos no nosso trabalho — até você os terá tido,
Müller — em que somos tentados a pensar que só o que escapa aos nossos
registros é importante, que só o que passa sem deixar vestígio existe
verdadeiramente, enquanto tudo o que os nossos fichários retêm é a parte
morta, as aparas, as escórias. Vem um momento em que um bocejo, uma
mosca que voa, uma coceira nos parecem o único tesouro, justamente porque
são absolutamente inutilizáveis, dados definitivos e logo esquecidos, subtraídos
do destino monótono do armazenamento na memória do mundo. Quem pode
negar que o universo consiste na rede descontínua dos instantes não registráveis,
e que dele a nossa organização não controla nada mais do que o molde, a
moldura de vazio e insignificância?
Mas é essa a nossa deformação profissional: mal nos fixamos em alguma
coisa, logo gostaríamos de incluí-la nos nossos fichários; e assim, aconteceu-me
frequentemente, confesso, catalogar bocejos, furúnculos, associações de ideias
inconvenientes, assobios, e escondê-los no lote das informações mais
qualificadas. Porque o posto de diretor para o qual você está prestes a ser
nomeado tem esse privilégio: poder dar uma marca pessoal à memória do
mundo. Entenda-me, Müller: não estou falando de arbítrio e de abuso de poder,
mas de um componente indispensável ao nosso trabalho. Uma massa de
informações friamente objetivas, incontestáveis, traria o risco de fornecer uma
imagem distante da verdade, de falsear o que é mais específico em cada
situação. Suponhamos que nos chegue de outro planeta uma mensagem de
dados puros, de uma clareza simplesmente óbvia: não prestaríamos atenção a
eles, nem sequer os perceberíamos; só uma mensagem que contivesse algo de
implícito, de duvidoso, de parcialmente indecifrável forçaria a porta de nossa
consciência, se imporia para ser recebida e interpretada. Devemos ter isso em
conta: é tarefa do diretor dar ao conjunto dos dados colhidos e selecionados por
nossos escritórios essa leve marca subjetiva, essa dose de opinável, de arriscado,

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