National Geographic - Portugal - Edição 221 (2019-08)

(Antfer) #1

90 NATIONAL GEOGRAPHIC


“Aqui, frango só em sonhos”, gracejou um ho-
mem. Comera erva para sobreviver na Síria. Numa
tenda, uma jovem desapareceu e voltou a surgir,
envergando o seu melhor vestido – cor-de-rosa,
com listas prateadas. Estava radiosamente grávida
e a sua beleza atravessou-me o peito, arrebatando-
-me por um segundo.
O que estou a tentar dizer é o seguinte: seja lá o
que os refugiados possam ser, não são impotentes.
Não são as vítimas infantilizadas que a esquer-
da política costuma apresentar na sua
pornografia de sofrimento. Parecem-se
ainda menos com os invasores retratados
na banda desenhada e temidos pelos po-
pulistas e fanáticos da direita – as hordas
de bárbaros que vêm apropriar-se dos
empregos, das casas, dos serviços sociais,
da identidade racial, da religião, dos par-
ceiros sexuais e de todos os outros bens
vitais dos países anfitriões. Aliás, desde o
Neolítico, as mais antigas populações da
Europa foram ultrapassadas e transformadas por
vagas de imigrantes provenientes da Ásia Central
e do Mediterrâneo Oriental. Sem essa miscigena-
ção, os “europeus” modernos não existiriam.
Não. Os refugiados no meio dos quais caminhei
são farmacêuticos barbudos e pastoras de cabras.
Retalhistas e intelectuais. Ou seja, seres humanos
eminentemente comuns, a braços com poucas al-
ternativas. Recordando os seus mortos, levam as
mãos ao rosto, cobrindo-o, e choram. Muitas ve-
zes, são incrivelmente fortes. E generosos.
“Venha, senhor, por favor”, murmurou-me
uma professora síria, na Turquia, acompanhan-
do-me para fora da sua sala de aula num campo
de refugiados, para apanhar um pouco de ar. Os
seus alunos estavam a desenhar decapitações e
enforcamentos, no âmbito de um esforço de tera-
pia pela arte. Ela reparou que eu emudecera. Fi-
cou preocupada com as minhas emoções.
Depois de caminhar mil e seiscentos quiló-
metros para leste, no Cáucaso, membros de uma
família de refugiados de etnia arménia prove-
nientes da Síria gritaram: “Não entre, por favor!”
Fizeram-me aguardar no exterior da sua casa,
enquanto se apressavam a pôr a mesa para uma
refeição que não podiam custear. Tinham-se
mudado recentemente para uma casa outrora
pertencente a uma família de etnia azeri, uma co-
munidade local expulsa durante o conflito do en-
clave de Nagorno-Karabakh. Encontrei os azeris
duzentos quilómetros mais tarde. Recusaram o
meu dinheiro num café do campo de refugiados.

Calçam-se num ápice com os sapatos que estão à
mão. Comecei a reparar nessas eclécticas pilhas
de calçado amontoadas no exterior das tendas dos
refugiados, nas terras altas da Jordânia.
“Acordo e vejo estes montes”, gritou Zaeleh
al Khaled al Hamdu, uma avó síria calçada com
chinelos de quarto bordados com missangas. Ace-
nou com a mão ossuda na direcção daquelas pi-
lhas estranhas que a rodeavam. “Sinto-me como
se carregasse o peso destes montes às costas.”


Sensação de peso. Peso. O peso esmagador do
desespero. O fardo gigantesco do desamparo.
Este é o emblema do refugiado de guerra. Ou,
pelo menos, é a informação que nos é fornecida
pelas televisões, jornais e telemóveis. A fotografia
mediática comum dos deslocados de guerra: co-
lunas de almas traumatizadas, caminhando com
passos pesados, de ombros curvos, ao longo de
uma estrada escaldante. Ou famílias amontoadas
em barcos esburacados navegando no Mediter-
râneo, com olhares angustiados, afundadas em
vulnerabilidade. Mas estas fotografias da vida dos
refugiados – pela lente do mundo dos ricos – são
limitadas e enganadoras. Servem sobretudo os
fins da própria comunicação social.
Durante semanas, caminhei pela Jordânia,
de tenda poeirenta em tenda poeirenta. Vi meio
milhão de sírios a definhar e foi apenas um frag-
mento doloroso dos cerca de 12 milhões de civis
dispersos pelo Médio Oriente. Não podiam re-
gressar às ruínas dos seus lares em Idlib, Hamah
ou Damasco. Mais ninguém os queria. Estavam
encalhados. Muitos trabalhavam arduamente em
explorações agrícolas, em situação ilegal.
Esgravatavam mais um sopro de vida na apanha
do tomate, ganhando 9,70 euros por dia. Quando
passava por eles, caminhando lentamente, acena-
vam na minha direcção. Alimentavam-me alegre-
mente com os produtos dos campos dos seus pa-
trões. Despejavam-me litros de chá pela garganta
abaixo. Sacudiam os seus cobertores imundos e
convidavam-me a sentar-me e a descansar.


OS REFUGIADOS
AO LADO DE QUEM CAMINHEI SÃO
SERES HUMANOS COMUNS
A BRAÇOS COM POUCAS ALTERNATIVAS
MAS NÃO IMPOTENTES. MUITAS VEZES,
SÃO INCRIVELMENTE FORTES.
E GENEROSOS, APESAR DAS SUAS
EXISTÊNCIAS MISERÁVEIS.
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