A Santa Aliança

(Carla ScalaEjcveS) #1

Marcus calçou luvas finas e usou a mesma entrada que da vez anterior – o portão
do jardim. O trinco estava para lá de gasto; o velho chalé quase parecia um museu
dos anos 70 e 80, quando Marcus era menino. Enfiou a chave de fenda entre o
portão e o batente. Durante quarenta anos, o portão tinha servido para deixar as
crianças no jardim. Crianças como Marcus e Eva haviam sido; tinham a mesma
idade, poderiam ter brincado juntos, brincado de guerra e de médico, entrado e
saído por portões como aquele, se apaixonado um pelo outro.
Fechou a porta da casa. Já estava na sala. Percebeu quanto estava cansado. Não
acendeu a luz. Sentaria ali e ficaria esperando. Aquilo tinha que acabar de vez. Seria
um disparo só. Nada de fazer que parecesse acidente ou suicídio; Marcus não tinha
mais forças para isso. Abririam investigação, e esta seria até minuciosa e correta. A
polícia ligaria Rico a Eva. A mesma arma. Continuariam culpando o crime
organizado. De resto, o que poderiam fazer? Mesmo se Marcus deixasse algum
rastro – coisa em que não acreditava –, a investigação nunca levaria a ele.
Vozes na rua. Crianças que passavam correndo, uma mulher que as chamava, que
pedia que fossem mais devagar, que não corressem pela via. Avisos, advertências.
Ah, quanto precisamos disso! Quem dera Marcus tivesse podido falar com aquela
mulher, Eva, antes de ela ter afanado um celular que não era seu.
Foi para a cozinha. Abriu a geladeira. Fruta velha, iogurte vencido. Tornou a
fechá-la. Saiu, subiu a escada. Entrou no quarto. Um só edredom. Dois criados-
mudos. Marcus sentou no lado descoberto da cama, aquele sem edredom, o lado
que só podia ter sido o do militar. No criado-mudo, um exemplar de A arte da
guerra, de Sun Tzu. Marcus conhecia muito bem aquele livrinho, um velho best-
seller. “Conhece o teu inimigo”, esse tipo de lugar-comum. Coisas que Marcus
tinha deixado para trás. Sun Tzu ensina as pessoas a ganhar guerras, mas não a
ganhar a paz, a dirigir e proteger um país. Por isso Marcus tinha largado o Exército.
Era o que o soldado de Eva deveria ter feito quando ainda havia tempo. Agora
Marcus estava sentado na cama dele, lembrando o momento em que tinha tocado

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