latas de alumínio para complementar a ajuda
que recebia da igreja mórmon, e as crianças
praticamente só usavam roupas de segun-
da mão. Talvez por causa disso, Nikki sofria
bullying e apanhava, então começou a se
afastar dos colegas, o que a fez se sentir ainda
mais marginalizada.
“Os pais de algumas crianças não deixavam
elas brincarem comigo”, conta. “Eu tentava
ser o que esperavam de mim. Não sei... talvez
eles percebessem coisas que nem eu entendia
que estava demonstrando. Ou talvez fosse só
porque éramos pobres e meu pai estava mor-
rendo, então as pessoas não sabiam como de-
senvolver uma amizade com a minha família.”
Os irmãos Smiths encontravam conforto
entre eles pedalando pelas trilhas e correndo
pelos campos perto de casa. “Nikki sempre
esteve ao meu lado para me apoiar, sem-
pre foi minha melhor amiga”, conta sua irmã
Heidi Pearce, seis anos mais nova. Depois do
diagnóstico do pai, conta Heidi, a família es-
tabeleceu como objetivo passar o máximo de
tempo possível junta, acampando e coletan-
do pedrinhas nos desertos de rocha verme-
lha. Naquela época, Karl Smith precisava de
muitas transfusões de sangue, e não se sabia
quanto tempo mais ele ainda viveria.
Ao redor dos 10 anos de idade, Nikki parou
de rezar para ser menina. Seu corpo não tinha
características para isso, e tudo o que ela sa-
bia era que tinha que ser menino. Talk-shows
norte-americanos como o de Jerry Springer
ridicularizavam cross-dressers e drag queens,
como se tudo fosse uma grande piada. Nikki
sabia que não era como aquelas pessoas da
TV, mas também tinha consciência de que era
diferente de todo mundo. Havia algo de erra-
do, confuso, e ela se odiava por isso.
Depois de quase seis anos lutando contra
o câncer, Karl faleceu. Foi muito difícil para a
família tão apegada e financeiramente desa-
fiador para Margery, com quatro filhos para
criar. Aos 14 anos, Nikki assumiu o papel de
ajudante da mãe, fazendo trabalhos de casa
e cuidando dos irmãos mais novos como po-
dia. “Eu acho que minha família meio que se
afundou quando meu pai morreu”, relembra.
“Minha mãe é muito sensível, e tudo a fazia
chorar. Nós nos dávamos bem pelo bem dela.”
Heidi, aos 8 anos, ficava no quarto de Nikki
ouvindo Pink Floyd e conversando com o ir-
mão mais velho.
Três anos depois, Margery se casou com
Richard Obrey, que Heidi descreve como “o
amor da vida da mamãe”. O padrasto, que na
época trabalhava como motorista entregador,
se dava bem com as irmãs menores, mas nem
tanto com Nikki e o irmão.
Nikki encontrou na escalada uma válvula
de escape para os atritos familiares. Come-
çou a se consultar com um terapeuta logo
que o pai morreu e rapidamente começou a
ajudar a guiar crianças mais jovens em ex-
cursões pelo deserto. A primeira vez em que
ela escalou foi em uma falésia chamada 9th
Street, perto de Ogden – uma via de nove
metros em uma aresta, um terceiro grau
fácil. Calçava tênis de basquete e a cadeiri-
nha era grande demais, mas se apaixonou ao
ter esse contato direto com a rocha. “Tudo
silenciou”, conta. “Eu não pensava mais na
escola. Eu não pensava mais no meu pa-
drasto. Eu não pensava mais na morte do
meu pai. Eu não pensava mais nas minhas
questões de identidade. Fiquei totalmente
focada, como nunca havia estado antes.”
Nikki conseguiu alguns equipamentos
velhos e ensinou os irmãos a dar segurança
durante as escaladas. Ela praticava boul-
der sozinha ou convencia algum colega a
ir junto. Quando abriu um ginásio de esca-
lada perto da sua casa e tendo encontrado
outro hobby além da arte, trocava mensa-
lidades por desenhos a lápis que fazia ins-
pirados em fotos de escalada.
Em 1994, aos 18 anos, Nikki participou
de uma competição de escalada no resort de
esqui Snowbird, em Utah. Havia centenas
de espectadores, muitos usando camisetas
com logo de escalada. Nas paredes de es-
calada, um fotógrafo e videógrafo estavam
pendurados em cordas fixas acima dos esca-
ladores. Nikki estava acostumada à vida dos
subúrbios de Utah, onde não há muito além
da escola e da igreja. O evento em Snowbird
mostrou que o mundo de seu esporte era bem
maior do que imaginava e que, nele, muito
mais era possível: viagem, propósito, carreira
e senso de pertencimento. Ainda assim, tudo
isso parecia fora de alcance.
CHERI RETORNOU da Europa para os
Estados Unidos em 30 de junho, seu ani-
versário de 42 anos, e Nikki a convidou
para comemorar no dia seguinte, com
uma noite na cidade. Cheri sabia que o
parceiro estava deprimido – quase can-
celou a viagem por causa disso. Em um
determinado momento, quando ela esta-
va viajando, Nikki telefonou para falar de
começar terapia, mas Cheri atribuiu isso
à tristeza generalizada em que Nikki se
havia envolvido depois de sair da Liberty
Mountain para ser freelancer. Ela não se
deu conta da severidade da depressão de
Nikki, muito menos de que a ideia de sui-
cídio passava por sua cabeça.
DE CIMA PARA
BAIXO: Com a
esposa, Cheri,
caminhando no San
Rafael Swell, em
Utah, em abril de
2018; escalando em
Idaho, em 2009; a
tattoo de Nikki
06/07.19 GO Outside 83
Grupo Unico PDF Passe@diante