National Geographic - Portugal - Edição 223 (2019-10)

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“Faltou-nos, pela sua morte, o dito capitão Fer-
não de Magalhães, com muitos outros”, escreve
laconicamente Elcano, sintetizando numa linha
um mundo de incertezas. A expedição, decapita-
da e dizimada, navegará sem rumo sob o coman-
do de Carvalho e Gonzalo Gómez de Espinosa,
fazendo cautelosamente escala em várias ilhas
até chegar ao Bornéu. Em Brunei, os aventurei-
ros constatam que as novas terras nada têm que
ver com as que tinham deixado atrás de si, em
matéria de riquezas, civilização e magnificência.
O sultão Siripada acolhe-os e dá-lhes carta bran-
ca para realizarem operações comerciais, mas o
idílio dura pouco: pouco depois, o desconfiado
Carvalho abre fogo contra um grupo de embarca-
ções onde se encontravam alguns filhos de Siri-
pada. Vinte dias depois da chegada, as duas naus
abandonam o requintado Bornéu e o seu mundo
de possibilidades, sem baixas mortais, mas dei-
xando em terra três prisioneiros. Vistas bem as
coisas, poderia ter sido muito pior.
A decisão precipitada de Carvalho, que os ex-
pulsou do paraíso, e o seu roteiro errático, que
os leva a sobreviver como corsários, dita a sor-
te do capitão português. No dia 15 de Agosto, é
decidida a sua substituição. Espinosa assume o
comando da Trinidad e Elcano sobe de posição
e passa de mestre a comandante da Victoria.


A PARTIR DA MORTE DE MAGALHÃES, as sucessões
nos comandos ocorrem sem derramamento de
sangue. “A liderança real não pode impor-se por
via do medo: é preciso conquistá-la e Elcano con-
segue-o”, afirma Xabier Alberdi, director do Museu
Marítimo Basco. Talvez isto explique que, a partir
desse momento, a experiência de marinheiro e o
bom senso do navegador basco se imponham.
Elcano decide avançar rumo às Molucas. Navega
para sul, traz para bordo – de livre vontade ou à
força – dois pilotos nativos que afirmam conhecer
a rota e, no dia 8 de Novembro, pouco mais de seis
meses volvidos sobre a morte de Magalhães, as
duas naus fundeiam em frente de Tidore, a princi-
pal produtora de cravo-da-índia do mundo. É a
ilha com que, sem dúvida, o defunto capitão-gene-
ral sonhou todas as noites da sua vida.
Aguarda-os uma agradável surpresa: Tidore
recebe-os como parceiros de longa data. O seu
sultão, Almançor, já fez negócios com árabes e
outros estrangeiros. Sabe como funciona o mer-
cado. Assinam-se os contratos necessários e co-
meça a armazenar-se o cravinho para carregar os
dois navios. Podemos imaginar os rostos dos ma-


rinheiros que, depois de demorarem dois longos
anos a alcançar a terra das especiarias, se vêem de
súbito com tanta riqueza nas mãos.
“Um saco de canela equivalia então ao soldo
de uma vida”, recorda Luis Mollá, comandante
de navio e grande estudioso da gesta associada
a esta expedição. À incredulidade e incerteza do
regresso, acrescenta-se um novo factor: a pressa.
É preciso abandonar Tidore o mais depressa pos-
sível para evitar o risco de serem descobertos pe-
los portugueses. Recorde-se que, para a coroa por-
tuguesa, a expedição é considerada uma traição.
Quando as duas naus se encontram já carrega-
das até ao limite da sua capacidade, as juntas da
Trinidad abrem-se devido ao excesso de peso e
o navio mete água. O mais sensato seria perma-
necer em Tidore para proceder às reparações,
mas, para não pôr em risco dois carregamentos
e duas tripulações, a Victoria deve partir.
Talvez tenha sido nesse instante que se deci-
diu que a Trinidad deveria encaminhar-se para o
Panamá mal estivesse em condições de navegar,
seguindo uma rota mais curta. Além disso, Darién
é território espanhol e ali, a nau, os homens e a
carga estarão a salvo. A Victoria, em contraparti-
da, partirá rumo a Espanha, mas não através do
Pacífico, seguindo antes pelo Índico.
“Decidimos morrer ou, com toda a honra, ser-
vir Vossa Majestade para lhe dar a nova do dito
descobrimento e partir com uma só nau”, es-
creve Elcano, já em Sanlúcar. Como foi tomada
a decisão de navegar atravessando águas portu-
guesas, quando o rei espanhol pedira expressa-
mente nas capitulações que isso não fosse feito,
para não entrar em conflito com o reino vizinho?
Teria Magalhães procedido do mesmo modo?
“Sim. Qualquer capitão de um navio no seu per-
feito juízo teria tomado a decisão de Elcano”,
afirma Luis Mollá. “Teria escolhido a opção mais
segura para a sua tripulação, mesmo que isso im-
plicasse desobedecer ao seu próprio soberano.”
Para Manuel Vilas Boas, descendente de Maga-
lhães e estudioso da figura do ilustre parente,
a situação não é assim tão clara. Como explica
no documentário da BBC sobre esta campanha,
“creio que ele teria regressado pelo caminho que
haviam seguido à ida. Creio que não teria deso-
bedecido ao rei de Espanha, nem incorrido ain-
da mais na ira dos seus compatriotas”.

ALÉM DAS HIPÓTESES, o certo é que Elcano enfren-
tou uma travessia nunca prevista nos planos da
viagem. A tripulação dividiu-se entre as duas naus
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