National Geographic - Portugal - Edição 223 (2019-10)

(Antfer) #1

22 NATIONAL GEOGRAPHIC


DESDE MUITO CEDO que os guerreiros celtas ofe-
receram os seus serviços a outros exércitos,
incluindo as forças romanas. Os comerciantes
traziam informação sobre os luxos do Sul. Atraí-
dos por relatos sobre melhores condições de vida
e provavelmente empurrados por maus anos agrí-
colas devidos à deterioração das condições climá-
ticas, dezenas de milhares de celtas reuniram-se
por volta de 400 a.C. para se encaminharem para
sul, atravessando os Alpes.
Chegaram a Roma em Julho de 387 a.C. Encon-
traram ruas e praças desertas. Vários milhares
de habitantes tinham fugido, deixando os ido-
sos, as mulheres e as crianças amontoados nas
suas casas. Os invasores celtas apoderaram-se
do Fórum, pilharam a cidade e massacraram os
moradores remanescentes. Contudo, a legião ro-
mana não se rendeu e, após um longo combate,
expulsou os invasores. A humilhação de terem
sido ameaçados na sua própria terra permane-
ceu profundamente enraizada na sua memória



  • talvez da mesma forma que o 11 de Setembro
    faz parte da memória colectiva dos norte-ameri-
    canos. O acontecimento marcou a relação entre
    romanos e celtas até à derrota final dos celtas,
    330 anos mais tarde.


ENTRETANTO, OS CENTROS ECONÓMICOS celtas
mais importantes floresceram no sopé dos Alpes
orientais. A razão foi o sal. Nos vales altos de
Hallstatt e em Dürrnberg, o sal encontra-se perto
da superfície. O sal é essencial para os seres huma-
nos e para o gado, sendo utilizado para temperar
os alimentos, preservar a carne e curtir couro.
Dürrnberg fica nas proximidades da zona navegá-
vel do rio Salzach, através do qual o “ouro branco”
era transportado para comercialização.
Holger Wendling conduz ao longo de uma
estrada rural pelos montes baixos, apontando
para a esquerda e para a direita. O director do
Departamento de Investigação de Dürrnberg do
Museu Celta Hallein, sabe exactamente onde as
pessoas viviam – em aldeias e explorações ru-
rais. Dürrnberg é estudado há décadas. Sendo


um centro do comércio de sal, Dürrnberg vendia
o produto a toda a Europa Central. Era uma “es-
pécie de zona económica especial de mineração
e outras indústrias”, diz Wendling.
A extracção mineira exigia muita mão-de-
-obra e dependia do investimento da abastada
classe dirigente. O sal era usado para outras fina-
lidades, além da preservação da carne. Também
conservou artefactos deixados para trás pelos
celtas. No interior da montanha, os arqueólogos
descobriram sapatos de cabedal com atacadores
bem preservados, bem como excrementos hu-
manos. Uma análise fecal mostrou que os mi-
neiros consumiam leguminosas e cereais e que
muitos padeciam de parasitas como lombrigas e
fascíolas hepáticas. Apesar disso, algumas pes-
soas viviam até aos 80 anos. Aproximadamente
em 1573, mineiros da época descobriram restos
de dois seres humanos nos poços.
É provável que os comerciantes de Dürrnberg
fornecessem também sal a Manching, que era
então a maior cidade a norte dos Alpes e um
dos exemplos mais conhecidos de um ópido. Os
arqueólogos usam este termo para designar po-
voações fortificadas construídas pelos celtas nos
séculos II e I a.C., que aliavam a vida secular à
espiritual, com residências, lojas e espaços
sagrados.
Susanne Sievers, investigadora do Ins-
tituto Arqueológico Alemão, trabalhou
durante mais de 30 anos em Manching,
junto de Ingolstadt, reconstituindo a vida
local. Depois de entrarem pela muralha
da cidade, erguida por volta de 125 a.C., os
visitantes encontravam uma povoação de
cariz aparentemente rural. Os moradores
tinham um modo de vida complexo, hierarqui-
camente organizado e com divisão do trabalho.
Cunhavam moeda e controlavam uma vasta
rede comercial com os romanos e outros povos.
Exprimiam-se por escrito em latim. Aperfeiçoa-
ram o fabrico dos metais e do vidro. O número de
habitantes poderá ter superado a fasquia dos dez
mil, agrupados em pequenas unidades, cada uma
ocupando uma área com cerca de cem metros
quadrados. “Os celtas estavam no limiar de uma
civilização avançada”, explica Susanne Sievers.
De súbito, a sua sorte mudou.

SENSIVELMENTE NA MESMA ALTURA em que o
grupo celta procurou refúgio em Le Mormont, os
residentes de Manching fortificaram a porta
oriental, mudando o acesso à sua cidade. Talvez

A DERROTA CELTA NÃO FOI APENAS
UMA VITÓRIA MILITAR ROMANA. ANTES


DO INÍCIO DO SÉCULO I A.C., OS ROMANOS


JÁ TINHAM ESTABELECIDO PROVÍNCIAS
NO SUL DE FRANÇA.

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