Público - 01.11.2019

(Ron) #1
Público • Sexta-feira, 1 de Novembro de 2019 • 41

CULTURA


Ney Matogrosso canta “coisas sérias”


num tempo de “retrocesso enorme”


DR

Ney Matogrosso em Bloco na Rua: “Para mim, bloco indica algo em movimento”

Depois de Atento aos Sinais, espectá-
culo que pelo seu enorme êxito Æcou
cinco anos em cena, rodando por
inúmeros palcos, Ney Matogrosso
estreou Bloco na Rua. Que parece
feito para a era Bolsonaro (há até
quem o veja como uma espectáculo
de protesto), mas na verdade foi
idealizado ao pormenor anos antes,
noutro momento da crise brasileira.
Já rodado no Brasil, em vários palcos,
chega agora a Portugal, com três
datas marcadas nos coliseus, no
domingo, dia 3, no Porto e dias 5 e 6
em Lisboa (sempre às 21h).
“Este repertório foi a décima
opção”, explica Ney Matogrosso ao
PÚBLICO, em Lisboa e em trânsito
para Londres. “Comecei a fazer esse
roteiro quando faltavam dois anos
para terminar o show Atento aos
Sinais, que durou cinco anos. E Æz
dez roteiros antes de chegar a este.”
O que nunca lhe tinha acontecido
antes. “Em geral faço dois ou três,
mas esse, como tinha tempo, Æz
mais. Aí, pensei: não quero cantar
música inédita, porque no Atento aos
Sinais tinha muita música inédita;
quero cantar só o que me der vonta-
de de cantar, independentemente de
já ter sido gravado ou não.” O apura-
mento foi, assim, maior, mas à medi-
da que as canções iam sendo testa-
das, algumas iam Æcando: “Aí tem
música do primeiro repertório, ain-
da. Mulher barriguda e Tem gente
com fome, duas que eu queria cantar
de novo, ou o Bloco na rua — inclusi-
ve o nome do show saiu dela. E tinha
muita coisa (até dos Novos Baianos)
que acabou não entrando.”


Guerra? Tomara que não
Não havia, portanto, uma ideia-base,
tanto que o próprio título do espec-
táculo acabou por surgir no Ænal.
“Não tinha uma ideia, mas agora as
pessoas dizem que é um show políti-
co. Mas não tinha Bolsonaro no
panorama, quando comecei. As coi-
sas estavam más nessa altura, o pro-
blema é terem piorado. Então o
repertório Æcou actualíssimo, por-
que houve um retrocesso enorme,


ção com Erasmo Carlos], mas porque
vi um Ælme do Visconti onde no meio
do Ælme entrava aquela música em
italiano. E eu achei a música linda [o
Ælme é Violência e Paixão, de 1974,
onde a canção é cantada por Iva
Zanicchi, com o nome Testarda io.
Roberto Carlos viria também a gra-
var essa versão, em italiano].”
Desta vez, Ney entra em palco
com um traje que manterá até Ænal
(não o mudará, ao contrário do que
sucedeu em vários espectáculos
anteriores), aparentando um lagar-
to de silhueta humana, com o rosto
oculto, que ele descobre com um
fecho-éclair. “Esse é o início do
show. Eu abro aquilo e começo a
cantar Eu quero é botar meu bloco na
rua. Na década de 1970, essa canção
tinha uma conotação política, mas
eu nem sabia. Para mim, ele indica
algo em movimento. E liga bem com
o resto do repertório. A abertura é
fatal: Bloco na rua, Jardins da Babi-
lónia e O beco.” A colagem de temas

obedece aqui, nos propósitos de
Ney, sempre a uma lógica? “Não é
literal. Mas na minha cabeça é uma
ideia que vai transcorrendo durante
o show.” Que fecha com Mulher bar-
riguda. “Termina dizendo ‘Mulher
barriguda/ haverá guerra ainda?/
Tomara que não’.”

O que as antenas captam
Uma acha para a fogueira dos que
vêem aqui um espectáculo político?
“Eu sei que estou dizendo coisas
muito sérias e que resultam sérias
neste momento. Mas aí o que é que
eu vou fazer? Não posso impedir que
as minhas antenas captem! Não
falam que os artistas têm antenas?”
No Brasil, a recepção ao espectáculo
(“já rodei por várias capitais, várias
vezes”) tem sido excelente, diz Ney.
“Instantaneamente, na hora em que
eu abro a boca e começo ‘Há quem
diga que eu...’, já sabem do que se
trata. E quando canto ‘Eu quero é
botar...’ todo o mundo está cantando
junto. Mais do que no Atento aos
Sinais, que já tinha uma abertura
poderosa.” Com Ney Matogrosso
(voz), estarão os mesmos músicos
que o têm acompanhado nos últimos
anos: Sacha Amback (direcção musi-
cal e teclados), Marcos Suzano e Feli-
pe Roseno (percussões), Dunga (bai-
xo), Maurício Negão (guitarra), Aqui-
les Moraes (trompete) e Everson
Moraes (trombone).
Bloco na Rua já foi gravado para
edição em DVD, mas sem audiência.
“Desta vez, Æz diferente. Aluguei
um teatro, botámos todo o equipa-
mento, mas sem público, porque
queria dar liberdade à equipa de
Ælmagens para entrar no palco. Por
exemplo: A maçã foi Ælmado com a
câmara quase junto da minha cara.
E gostei do resultado. Não conheço
nenhum outro DVD semelhante a
ele, não parece a Ælmagem de um
show, parece um Ælme. Porque dei
ao [realizador] Filipe Nepomuceno
total liberdade. Sempre gostei das
intervenções dele nos anteriores e
neste ele trabalhou totalmente livre.
Transgrediu tudo, Æcou uma coisa
psicadélica.” O DVD será lançado
ainda este mês.

O novo espectáculo de Ney Matogrosso parece feito para o Brasil de Bolsonaro, mas foi pensado muito


antes dele, como diz o cantor ao PÚBLICO. Nos coliseus, no domingo no Porto e dias 5 e 6 em Lisboa


Música


Nuno Pacheco


em todos os sentidos. Mas não foi
para isso que eu Æz este show, por-
que as músicas já estavam escolhidas
antes de ele aparecer.”
Ao longo do espectáculo, que reú-
ne duas dezenas de títulos, podem
ouvir-se canções como Eu quero é
botar meu bloco na rua (Sérgio Sam-
paio), A maçã (Raul Seixas), O Beco
(Herbert Vianna e Bi Ribeiro), Mulher
Barriguda, do primeiro álbum dos
Secos e Molhados (1973), Postal do
Amor (Fagner, Fausto Nilo e Ricardo
Bezerra), Ponta do Lápis (Clodô e
Rodger Rogério), Como 2 e 2 (Caetano
Veloso), Feira Moderna (Beto Gue-
des, Lô Borges e Fernando Brant) ou
Álcool (bolero filosófico), de DJ Dolo-
res, da banda sonora original do Æl-
me Tatuagem. “Quando vi esse Ælme,
há muitos anos, eu disse logo que
queria cantar aquela música. E aqui
há isso: músicas que eu ouço um dia
e digo: vou cantar. Como A distância.
Mas eu não resolvi cantar por causa
do Roberto [Carlos, co-autor da can- [email protected]

Eu sei que estou
dizendo coisas
muito sérias e que
resultam sérias
neste momento.
Mas aí o que é que
eu vou fazer? Não
posso impedir que
as minhas antenas
captem! Não falam
que os artistas
têm antenas?
Ney Matogrosso
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