ípsilon | Sexta-feira 1 Novembro 2019 | 5
Pedro Costa
bateu à porta
de uma casa na
Cova da Moura.
Vitalina Varela
abriu. Anos
depois, Äzeram
um Älme onde
esta mulher
cabo-verdiana
narra a sua
história. “O meu
marido morreu,
Äquei sozinha
e agora sou livre”,
diz-nos a actriz
em entrevista
na Cova da
Moura, onde
vive. O Älme
é também
“a metade
feminina”
de uma viagem
iniciada em
Juventude em
Marcha, confessa
o realizador.
Joana
Gorjão
Henriques
sobre
minha
vida
o meu
ento”
E
la chega no escuro da noite,
descalça, pé ante pé a descer
as escadas do avião. A recebê-
la está um grupo de mulheres
com a farda das limpezas.
Uma delas abraça-a. “Aqui em
Portugal não há nada para ti. (...)
volta para a tua terra”, diz-lhe em
crioulo — a língua da actriz e a língua
do filme Vitalina Varela.
Mas Vitalina Varela, a mulher, não
virou costas. Ficou em Portugal de-
pois de ter estado quase 40 anos à
espera que o marido a fosse buscar à
ilha de Santiago, em Cabo Verde. Afi-
nal, foi ela quem acabou por se meter
num avião, chegando três dias depois
do enterro de Joaquim de Brito Va-
rela, a 30 de Junho de 2013.
Joaquim Varela imigrara para Por-
tugal em 1977, já Cabo Verde se tor-
nara independente. Veio como outros
à procura de vida melhor. Trabalhou
como pedreiro, comprou uma casa
na Cova da Moura, na Amadora, onde
vivem outras famílias de origem cabo-
verdiana.
Narradora da sua própria história,
na sua língua, fala-nos quase sempre
na penumbra, sussurrando uma vida
de desamor mas também de fé e de
libertação.
Vitalina e Joaquim tinham sido vi-
zinhos em Figueira das Naus.
Olhando o mapa, percebe-se que não
é muito longe do Tarrafal. Namora-
vam, a terra era pequena, os pais de
ambos conheciam-se. Ela tinha 17
anos quando ele partiu para a Ama-
dora e 20 quando casaram por pro-
curação, ele em Portugal e ela em
Cabo Verde.
Durante o período em que estive-
ram casados, pouco se viram. Joa-
quim iria a Cabo Verde duas vezes,
uma em 1995 e outra em 1998. Foi
nessas alturas que Vitalina engravi-
dou de Jessica, hoje com 23 anos, e
depois de Bruno, com 21 anos. A his-
tória de Vitalina Varela também é
sobre o luto desse amor vivido à dis-
tância.
O realizador Pedro Costa e a actriz
que hoje tem 59 anos conheceram-se
durante a rodagem de Cavalo Di-
nheiro, 2013. Em Cavalo Di-
nheiro está, aliás, um vislumbre do
que viria a ser este filme, quando Vi-
talina se cruza com Ventura e lhe
conta parte do que se ouve agora.
Pedro Costa andava à procura de
uma casa para filmar na Cova da
Moura. Um dia bateu-lhe à porta.
“Perguntou-me se queria trabalhar
com ele”, conta-nos Vitalina Varela,
num café do bairro. A sua figura na
vida real não é muito diferente da do
cinema. Tem um semblante menos
sério, talvez porque o luto já não lhe
pese da mesma maneira. Mas de vez
em quando caem lágrimas, sobretudo
quando recorda o marido.
Quando o realizador a conheceu,
Vitalina chegara a Portugal há pouco
e praticamente não saía de casa du-
rante o dia. Lá dentro batia com a
cabeça na soleira das portas, baixas
demais para a sua altura, não gostava
das janelas pequenas, percorria as
divisões esguias e escuras.
No filme, ela critica a casa onde o
marido vivia em Portugal, comparan-
do-a com os dez quartos e divisões
amplas da moradia que fizeram em
Cabo Verde, perto da capela da Fi-
gueira das Naus. Durante uma das
poucas visitas de Joaquim, e com as
suas próprias mãos, os dois construí-
ram a casa em 45 dias, até de noite, às
vezes sem dormir.
Um dia ela fez o jantar, ele não apa-
receu, tinha “fugido para Portugal”.
Ficou a andar por Lisboa e Coimbra
atrás de mulheres, “como gado que
sai do curral”, conta ela no filme.
A casa, lugar de luto
O nosso encontro com Vitalina Va-
rela começa na verdade em sua casa.
As críticas sobre o espaço mantêm-
se. Mas agora o telhado está comple-
tamente novo — já não cai, como
numa das cenas, e como aconteceu
enquanto tomava banho. A casa está
a ser remodelada. A porta fica aberta,
ao contrário do que acontece du-
rante o filme. O seu quarto e parte da
cozinha ainda mantêm as semelhan-
ças com o que se vê no ecrã. O resto
está irreconhecível. Divisões peque-
nas vão ser transformadas num es-
paço maior e aberto. Há luz e janelas
novas.
Tudo o que conta no cinema é ver-
dade: “Falo coisas que se passaram
comigo”, diz.
No pequeno pátio da entrada pousa
uma máquina de fazer cimento. Vita-
lina Varela vai de vez em quando bus-
car algum com uma pá, ajudando o
senhor que está a fazer as obras. “Não
tenho medo de trabalho”,
Narradora da sua própria história, Vitalina Varela
fala-nos quase sempre na penumbra,
sussurrando uma vida de desamor mas
também de fé e de libertação
PEDRO COSTA
e