8 | ípsilon | Sexta-feira 1 Novembro 2019
seis dias por semana, que decor-
reram durante ano e meio, com algu-
mas interrupções grandes, uma delas
porque Ventura teve um Acidente
Vascular Cerebral, outra porque a fi-
lha de Vitalina ficou doente. Filma-
ram na Cova da Moura, no bairro 6 de
Maio, na Quinta da Lage, num antigo
cinema em Sacavém, em Sintra, “em
todo o lado”, conta Vitalina.
Conversámos com o realizador no
mesmo dia em que conhecemos Vi-
talina. Agora é ele quem está sentado
no muro do pequeno logradouro à
porta de casa. Ouve-se o som das
crianças a brincar na rua. E o som das
obras em casa dela.
Quando andava à procura de um
sítio para filmar, falaram-lhe de uma
casa no bairro de um tipo sobre quem
se sabia pouco — Joaquim. Pedro
Costa bateu à porta. Apareceu Vita-
lina vestida de preto, com aquele
olhar. Foi como “uma aparição”,
conta o realizador. Na altura, ela “saía
pouco sozinha, saía sobretudo à
noite” — de dia quase nada. “Quando
a conheci ela tinha a porta de casa
fechada”, lembra.
Contou-lhe a sua história e, aos
poucos, o realizador foi-a desafiando
a ir às filmagens de Cavalo Di-
nheiro. Nessa altura começou a
tornar-se evidente que havia ali um
filme para realizar com ela. Vitalina
Varela, a mulher, tinha “a história
toda”. E tinha a história que lhe fal-
tava completar.
“Juventude em Marcha é um filme
um bocadinho masculino: era ter a
primeira barraca e o primeiro homem
das Fontainhas como ideia, mas tam-
bém o fim disso, com o realojamento
para os blocos brancos no Casal da
Boba. Foram três/quatro anos com os
jovens cabo-verdianos, no mundo dos
trolhas, um mundo masculino. De-
pois a minha relação com o Ventura
sugeriu outra coisa: desenhámos um
mapa dos sítios onde estávamos no
25 de Abril. Concluímos que quase
nos cruzámos, ele relativamente apa-
vorado porque estava a pensar que ia
ser recambiado e eu com uma ban-
deira anarquista. Quando a Vitalina
apareceu, a força dela — da cara aos
olhos, ao desgosto e àquela dor — tive
a suspeita que podíamos fazer um
filme que seria a metade feminina
desta viagem. O ciclo da imigração
era virem primeiro os homens e as
mulheres ficavam para trás, às vezes
nunca chegavam. Esta ideia de que a
Vitalina podia não ter vindo é muito
interessante.”
O objectivo era filmar a partir do
momento em que Vitalina chega a
Portugal até “desaparecer o luto”, até
ela “começar a respirar melhor”. A
história que conta no filme é toda ver-
dade. “Nunca houve guião, escrevia
umas coisas para o apoio mas estão
muito longe do filme acabado.” Como
actriz, Vitalina “trabalhou imenso”,
elogia o realizador, “nunca recusou
melhorar as falas, as respirações, as
posições, coisas simples e difíceis”.
A parte menos literal do guião, um
pouco desviada da realidade, é a pas-
sagem em que aparece o padre, in-
terpretado por Ventura — é uma fi-
gura que existiu, um padre de Fi-
gueira das Naus, mas foi
“transportado” por Pedro Costa para
uma igreja na Quinta da Lage, edifício
por sua vez reproduzido num cinema
abandonado em Sacavém. “Mesmo
a cena em que ela lê um papel na co-
zinha [um excerto de jornal sobre o
casamento da rainha Isabel], estava
lá, em casa do marido”.
Costa nunca conheceu Joaquim
senão pela voz de Vitalina. Mas acre-
dita que “para onde o filme aponta é
a verdade: ele veio com a maior das
boas vontades, começou a trabalhar
e a amealhar e depois perdeu-se.
Deve ter andado nos tráficos, mas isso
depois é o ‘diz-se’. Mesmo familiares
dele não contam muito.”
Queremos saber se a história de
Vitalina representa também algo mais
político para o realizador que já fil-
mou nas Fontainhas, no 6 de Maio, na
Cova da Moura — bairros na Amadora
maioritariamente habitados por po-
pulação de origem africana. “A coisa
política é o trabalho que ela fez — de
se expor ou de se representar a ela
própria. Se há uma política no filme
é essa: o trabalho ter sido feito como
foi, ter chegado a este resultado com
aquilo que ela diz.”
Filmar em lugares como a Cova da
Moura ou as Fontainhas, com as pes-
soas do bairro, já é um gesto ao qual
é importante acrescentar “uma eco-
nomia do filme que deve ser gémea
da economia do sítio onde as pessoas
vivem”, defende. “Não posso vir para
aqui com maquinaria de cinema, ví-
cios do cinema, salários de cinema.”
Perdeu a confiança nos homens
mas afirma que “um homem só
vale quando tem uma mulher”.
Repete várias vezes: “É a mulher
que dá valor ao homem”
Vitalina Varela e Cavalo Dinheiro,
juntos, foram feitos com 680 mil eu-
ros. “Qualquer cineasta não faz a
coisa por menos de um milhão para
um filme. Isto é política.”
Para já a prioridade é recuperar a
casa. “Sem isso parece que o filme
não está acabado”.
Afinal, apesar do desgosto com o
marido, e apesar de neste momento
ela ter grande parte da família em
Cabo Verde, Vitalina Varela foi-se dei-
xando ficar em Portugal. Não planeia
partir. Quando se casou, fez um com-
promisso para a vida, perante Deus,
perante si e o marido. Mas hoje sente:
“Faço o que eu quero. Não tenho nin-
guém para dizer o que vou fazer.”
Parece existir sofrimento mas tam-
bém alívio no seu luto. Pensando no
filme, isso também é uma possível
leitura. “O meu marido morreu, fi-
quei sozinha e agora sou livre. Tinha
a cruz de Cristo nos ombros e não me
podia mexer. Quando caiu, fiquei
livre.”
Vitalina e Joaquim: ela tinha 17 anos quando ele
partiu para a Amadora e 20 quando casaram por
procuração, ele em Portugal e ela em Cabo Verde
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