24 | ípsilon | Sexta-feira 1 Novembro 2019
Teresa de Noronha. E é por isso
que inclui fotografias de cada um no
interior de Roubados, para não apagar
a sua memória deste reportório. “Es-
tes fados são uma espécie de bilhete
de identidade daqueles fadistas, por-
que foram feito por músicos e letristas
para eles, a pensar na personalidade
artística deles, a pensar nas vozes de-
les, a pensar no percurso deles e, às
vezes, até nas vidas deles”, explica.
Daí que Aldina Duarte se recuse a
fazer o papel de uma vulgar cartei-
rista. Não admite roubar o bilhete de
identidade destes fadistas fundamen-
tais na sua vida – e na História do fado
- e colocar a sua fotografia na capa,
apagando quaisquer vestígios dos
intérpretes originais. “Isso seria fal-
sear e seria desonesto da minha parte - há quem o faça sem achar o mesmo”,
ressalva. E é por isso que chama Rou-
bados a este álbum, escancarando
ainda mais o facto de cantar à boleia
destes nomes. Só que fá-lo colocando-
se inteira nestas releituras, procuran-
do-se em cada um destes fados, rein-
ventando a biografia da Rosa enjei-
tada, baixando Padre nosso da
conhecida versão orquestral até um
espantoso sussurro em tom de ora-
ção, enfatizando os versos de Ve n d a -
val “só sei que me encontrei / e que
eu sou eu enfim” como se cantasse a
sua epifania fadista.
Uma história no fado
Aldina Duarte canta agora estes clás-
sicos sem medo, sabendo que “resis-
tem a tudo”. Só que não há quaisquer
patifarias que possa realmente fazer
a estes temas. Porque a forma como
os torna matéria viva justifica, sem
quaisquer dúvidas, a existência deste
disco. É o Vendaval de Tony de Ma-
tos, inspirado pela noite em que o
escutou uma única vez cantado pela
voz feminina de Maria Amélia
Proença, ou a emoção arrasadora
que derrama sobre Porta maldita ou
Praia de Outono, a tristeza imensa
que deixa abater-se sobre uma voz
que canta como quem se refaz de um
ataque de choro em Veio a saudade.
Mas é também a verve que imprime
ao humorístico Oiça lá ó senhor vi-
nho, num diálogo entre um bêbedo
e o seu copo de vinho que poucas
vezes se fez tão límpido quanto nesta
versão, ou um Ve m que é quase uma
fugaz e cortante ranchera cantada
por Chavela Vargas.
De todas as revisitações que leva a
cabo, talvez nenhuma vá tão longe
quanto Rosa enjeitada. Admiradora da
interpretação original de Maria Teresa
de Noronha desta narrativa de uma
mulher abandonada pelos pais e com
uma vida desgraçada, nunca foi capaz
de aceitar a segunda parte do poema,
que lhe soa “à sua condenação para o
resto da vida”. Por isso, decidiu supri-
mir os versos finais neste dueto frágil
que partilha com António Zambujo –
“a pessoa mais resistente à crítica e ao
ataque que já vi”, descreve, lem-
brando o quanto o seu fado tão pes-
soal, cheio de cante alentejano e MPB,
chocou os puristas na sua chegada ao
Sr. Vinho. Rosa enjeitada acabou por
entrar no disco quando Aldina se con-
venceu que esta poderia ser a sua ma-
neira de “dar voz a quem não a tem”.
“Decidi pegar nesta Rosa e fazer
dela uma de nós. É mais uma mulher
que sofreu, uma excluída do mundo
que eu quis incluir.” Até porque os
clássicos também podem provocar
sentimentos contraditórios. Rouba-
dos é uma assumida viagem pessoal
por aquilo que Aldina acolhe e rejeita
neste temas, um reconhecimento
daquilo que a irrita e a apaixona, uma
reflexão sobre o lugar que tiveram na
sua vida, o que aprendeu a escutá-los
e em que vozes os escutou. “Este
disco pôs-me a mexer na minha his-
tória toda no fado e fizeram-me ver o
que ficou deles em mim.”
Rosa enjeitada toca também nos
mais arreigados valores por que rege
a sua vida. Desde sempre assumida
como mulher de esquerda – chegou a
ser convidada para mandatária do
Bloco de Esquerda, assume ter atre-
vessado um período de orfandade
partidária após a saída de cena de
Francisco Louçã e da morte de Miguel
Portas –, garante que hoje há duas
coisas que a indignam e que a encon-
trarão sempre pronta para a luta: “de-
nunciarei e usarei toda a minha inte-
ligência para combater a humilhação
dos mais fracos e a falta de respeito
pelo sofrimento alheio”. “São os dois
valores pelos quais sou capaz de dar
a vida.” E também por isso o discurso
se lhe inflama quando se refere a “um
tipo [André Ventura] que só por estar
num canal populista e ser de um clube
ganha um lugar no Parlamento” e a
uma Iniciativa Liberal que tem “um
discurso superficial e uma nova lin-
guagem política que permanente-
mente pega nas coisas mais graves,
sérias e complexas para criar um dis-
curso que favoreça a popularidade”.
Saudades
Não é acidental que Roubados co-
mece pelo Vendaval, de Tony de Ma-
tos. Há toda uma carga simbólica
inescapável a quem acompanha o
percurso de Aldina. Se o anterior
Quando se Ama Loucamente era um
disco de luto pelo fim de uma rela-
ção, sem ceder ao resssentimento,
antes se afirmando como prova de
sobrevivência, Roubados começa por
anunciar, precisamente, que “o ven-
daval passou”, que o amor que a
prendeu “desfez-se em fumo” e que
“Denunciarei
e usarei toda
a minha inteligência
para combater
a humilhação dos
mais fracos e a falta
de respeito pelo
sofrimento alheio”
navega “agora em mar de calmaria”,
“deixando para trás” as suas mágoas.
E termina num arrepiante arrebata-
mento em que Aldina imita, ao seu
jeito, Tony de Matos – “Em cada fado,
roubei sempre uma frase que acho
que define aqueles fadistas”, deixa
escapar. Ainda assim, conclui que
este é o seu álbum “mais melancó-
lico e nostálgico de todos”. “Talvez
pela história e pelo conteúdo.”
Sendo da sua natureza alimentar-se
do passado mas não se deixar cair em
qualquer emboscada que a deixe
presa àquilo que já se findou, Aldina
não costuma ser assaltada por sauda-
des. Mas há um tipo de saudades a
que, na verdade, não resiste. “Tenho
muitas saudades de diariamente ouvir
cantar algumas pessoas, como ouvi
em tempos.” E concretiza: “Durante
muitos anos, era normal o Carlos do
Carmo ir regularmente ao Sr. Vinho e
cantar no fim da noite. Para quem tem
o sentido na sua vida no fado, como é
o meu caso, é tão marcante.” E era
normal também ver aparecer Fer-
nando Maurício, o criador do “melhor
Fado Carriche de sempre”, Escrevi teu
nome no vento, cuja interpretação Al-
dina lembra como “esmagadora de
tão bela, sem nada de muito terreno
que se lhe possa comparar – deve ser
como a sensação daquelas pessoas
que vão dar um beijo ao Papa”. Essa
vivência das casas de fados está, no
seu entender, ameaçada por uma
sombra de industrialização que “pode
estragar completamente e atrasar um
determinado caminho”. E aponta o
dedo às sessões vespertinas pensadas
para os percursos turísticos como um
mal que se anuncia e promete perver-
ter tudo.
Por vezes, Aldina acorda também
com saudades de saber que nessa
mesma noite poderia ir ouvir Beatriz
da Conceição a um dos poisos fadistas
de Lisboa. E esse sentimento conti-
nua a visitá-la quando, todas as noi-
tes, no curto trajecto de sua casa
(onde vive rodeada dos livros que
abastecem a sua insaciável curiosi-
dade) até ao Sr. Vinho, pensa como
seria bom se Maria da Fé tivesse von-
tade de cantar. “Sinto mesmo falta
disto”, admite. “Mas não me entris-
tece. Comove-me. Por ter isto vivo
dentro de mim, desta maneira, é um
sentido para a minha vida e que nasce
da esperança.” E essa pulsação de
vida está em cada um destes fados
magnificamente Roubados.
De todas as
revisitações
que leva a cabo,
talvez nenhuma
vá tão longe
quanto Rosa
enjeitada, num
dueto frágil
que partilha
com António
Zambujo
(em cima)
e
Roubados
Aldina Duarte
Sony Music
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