Público - 01.11.2019

(Ron) #1
ípsilon | Sexta-feira 1 Novembro 2019 | 23

Chama Roubados a este álbum escancarando o
facto de cantar à boleia de nomes como Tony de
Matos, Amália, Carlos do Carmo, Maria da Fé ou
Beatriz da Conceição. Só que fá-lo colocando-se
inteira nestas releituras, procurando-se em cada
um destes fados

Aldina não costuma


ser assaltada por


saudades. Mas há


um tipo de saudades


a que, na verdade,


não resiste.


“Tenho muitas


saudades de


diariamente ouvir


cantar algumas


pessoas, como


ouvi em tempos”


uma “extraordinária inquietação” – “e
essa coisa é que é linda”, diz, citando
Inquietação, de José Mário Branco – e
atirou-se de cabeça para o fado, sem
olhar para trás. Depois de uma passa-
gem pelo Clube de Fado, seria aco-
lhida pela enorme sageza e orienta-
ção de Maria da Fé, que identifica o
talento e a alma fadista a léguas, e
seguiu para o Sr. Vinho. Talvez pela
sua natureza “um bocado selvagem”,
não começou por cantar na casa de
fados os clássicos mais seguros e atrás
dos quais é mais fácil esconder a inex-
periência e a inocência. Em vez disso,
entregou-se logo aos fados tradicio-
nais, “bichos” mais indomáveis e que
exigem do intérprete uma personali-
dade mais vincada – não dá para se-
guir interpretações históricas de uma
forma menos comprometida, vai logo
tudo a jogo.
“Preferi ir para os fados tradicio-


nais, que é onde se faz toda a porcaria


  • quando se faz mal, faz-se mesmo mal
    porque é sem rede”, explica. “E até
    saber o suficiente para não cair e es-
    tragar tem de se fazer muita asneira,
    à frente de toda a gente – porque essa
    é a maneira de aprender, cantando na
    casa de fados com público. Anda-se
    muitos anos a fazer porcaria à frente
    das pessoas, mas é a maneira de se
    aprender e a maneira também de se
    ganhar, de perceber o nível da nossa
    coragem e se é realmente por ali que
    se quer ir. E eu queria.”
    Era também uma maneira de ten-
    tar, com desmedida voragem, recu-
    perar algum do tempo perdido. Ten-
    do-se iniciado no fado sabendo de cor
    apenas alguns fados de Amália e de
    Carlos do Carmo que ouvia na rádio,
    sabia que a chegada “de uma pessoa
    já adulta a uma arte de tradição oral
    não ia ser fácil”. “Não é a mesma coisa


do que começar a cantarolar em
miúdo e ir por ali afora. Eu já ouvia o
que estava mal permanentemente, já
tinha uma bagagem de que não me
podia livrar porque senão não era eu
e tinha de perceber como é que essa
bagagem se encaixava naquela casa.”
A intensidade a que se entregou a esta
aprendizagem logo a levou a chegar
todos os dias mais cedo ao Sr. Vinho,
com um gravador em riste, que apon-
tava ao viola da casa, Manuel Martins,
pedindo-lhe que lhe ensinasse as me-
lodias dos tradicionais. “Foi uma
sorte, não aprendi pelos discos”, re-
conhece. “Ele era um grande músico
e trauteava, para o gravador, a base
melódica que eu tinha de saber muito
bem para depois então estilar a partir
dela.” O resto viria com a escuta
atenta todas as noites da criatividade
sem-fim que Maria da Fé punha na
verdade dos seus fados e no manan-
cial de ensinamentos que a fadista
com ela partilhava.

As coordenadas
Aldina Duarte cantava no Sr. Vinho
há dois anos, ainda mal tinha aca-
bado de domar a voz e perceber mi-
nimamente o seu lugar naquela arte,
quando lhe chegou um primeiro con-
vite da EMI-Valentim de Carvalho,
por parte de Mário Martins, para se
estrear em disco. E o desafio que lhe
era lançado era o de gravar um disco
com, grosso modo, o reportório que
agora lhe ouvimos em Roubados – fa-
dos populares, daqueles que passam
de boca em boca e cativam de ime-
diato pela familiaridade. Ela recusou.
Achava que “ainda não sabia nada,
não sabia quem era artisticamente,
nem tinha técnica para isso – às vezes
tinha ideias para cantar que não con-
seguia executar”. Ao fim de dois
anos, acredita, não se pode ter mais
do que uma voz fresca. A editora
queria lançá-la como a qualquer ou-
tra nova fadista: mesmo admitindo
que lhes interessava aquela “perso-
nalidade artística diferente”, o mo-
delo seria o habitual e que consistia
(e consiste) em peneirar os reportó-
rios alheios e anteriores à procura
dos temas que lhe pudessem assen-
tar bem na voz.
Só que Aldina não achava que ti-
vesse já “os mínimos necessários para
aparecer aí pelo mundo a cantar”.
Seria como interromper um mergu-
lho a meio do salto. Como tomar um
atalho quando ainda nem sequer sa-
bia bem para onde se dirigia. Seria o
equivalente a fazer uma prova de afir-
mação como fadista quando estava
ainda a tentar perceber quem era no
meio de uma História que crescia
(para trás) a cada passo que dava (em
frente). E foi essa História também
que lhe causou medo na altura. “Uma

rumina os textos a favor das emoções
e sem se perder com truques estéreis.
Não é por acaso que sempre gravou
(com a excepção do lado B de Ro-
mance(s)) acompanhada apenas pela
guitarra portuguesa e pela viola de
fado, nunca se protegendo no res-
guardo de outros instrumentos (aqui
ouvimos a riqueza da viola de Rogério
Ferreira e a guitarra de Paulo Parreira,
de uma elegância de subtracção de
notas, como se elas queimassem).
Atira-se aos fados como se eles fossem
a própria vida, seguramente como
sendo a sua razão de viver. Agora,
escrevíamos, a situação é bem dife-
rente, e por muito que estes clássicos
a transportem para registos vocais
que nunca tinha ousado percorrer, a
sua essência não se adultera.
“Por mais que a minha personali-
dade possa mudar nalguns aspectos,
muda de acordo com o que ela é, não
muda para outra coisa – já não corro
esse risco.” Não são estes fados que a
definem; é ela que lhes empresta a
sua marca e a sua definição.
É também uma forma de Aldina se
estabelecer (de uma outra maneira)
como elo de uma tradição oral, recu-
perando fados clássicos que, à excep-
ção de dois casos, nunca tinha can-
tado na sua carreira. Ao cantar Ve n -
daval, Praia de Outono, Oiça lá ó
senhor vinho, Arraial ou Ve m, está
também a dar-nos pistas sobre as
coordenadas para o seu fado, ao re-
colher temas que foram criados para
as vozes de Tony de Matos, Carlos
Ramos, Maria da Fé, Celeste Rodri-
gues, Beatriz da Conceição, Hermínia
Silva, Amália Rodrigues, João Ferrei-
ra-Rosa, Lucília do Carmo, Tristão da
Silva, Carlos do Carmo e Maria e

coisa é pegar nos fados tradicionais,
criar a minha própria linguagem e
cantar até aprender. Não estaria a
estragar nada de ninguém. Mas
achava que não tinha ganhado legiti-
midade para mexer nos clássicos.”
Agora, a situação é bem diferente.
“Mal ou bem”, Aldina tem plena cons-
ciência de que a sua voz lhe pertence
por inteiro. Carrega uma série de re-
ferências, mas a sua personalidade
artística está formada. É uma cantora
de peito e cabeça, de coração e de
intelecto, de uma secura interpreta-
tiva de quem não deixa escapar o
sentido de cada palavra e lhe confere
uma total intensidade, mas de quem

FOTOGRAFIAS DE ALFREDO CUNHA
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