Público - 01.11.2019

(Ron) #1

30 | ípsilon | Sexta-feira 1 Novembro 2019


FOTOGRAFIAS DE ANDRE C. MACEDO

Viagem a um Reino


Maravilhoso é o terceiro


álbum dos Lavoisier.


É mais que isso: um


diálogo de Roberto Afonso


a Patrícia Relvas com


o poeta transmontano,


um mergulhar no seu


espírito e no seu território.


E um alerta: Torga pode


estar hoje algo esquecido,


mas “precisamos hoje


de pessoas assim,


transparentes”


Torga disse “deixa falar o mes


e devaneia” e os Lavoisier ouv


Mário Lopes


M


eteram-se a caminho, car-
regados de livros, guitar-
ras e amplificadores. Su-
biram dois terços de país,
de Lisboa a Vila Real, e
subiram-no com uma
obrigação. “Vamos criar, Patrícia,
vamos criar”, dizia Roberto Afonso
a Patrícia Relvas, ele o guitarrista e
vocalista, ela a vocalista principal,
eles os dois os Lavoisier. Partiam
para dar forma àquele que será o
terceiro álbum da dupla que se apre-
sentou a revolver as fundações de
música popular portuguesa sob os
auspícios da antropofagia tropica-
lista, a voz urgente traduzida numa
guitarra eléctrica em catarse e no
canto voltejando livre, de uma inten-
sidade expressiva arrebatadora.
Partiam então os Lavoisier. Iam em
busca de Miguel Torga, o poeta e es-
critor transmontano, o tradutor do
espírito da sua terra, o evocador da
matéria de que somos feitos, o poeta
da força telúrica e da solidão, mas
também da força libertadora da via-
gem. Iam em busca do álbum que
será apresentado esta sexta-feira no
Teatro de Vila Real, às 21h30. Intitu-
lado Viagem a Um Reino Maravilhoso,
será a primeira incursão da Armoniz,
editora especializada na reedição de
álbuns históricos do passado, como
Quarteto 1111 e Blackground, dos Duo
Ouro Negro, na música do presente.
Sucessor na discografia dos Lavoisier
a Projecto 675 (2014) e É Teu (2017),
destaca-se nela pela sua singulari-
dade. É um lugar feito som, são os
Lavoisier a fazerem folk expressio-
nista, fertilizando solo antigo e impo-
nente com vibração eléctrica. É um
diálogo entre almas separadas pelo
tempo – Torga nasceu em 1907, os
Lavoisier um século depois –, mas
irmanadas por um espírito não tão
distante: umas e outra presas à terra
e sempre desejosas de sonho, serenas
rochas de granito e irrequietos pássa-
ros migratórios.
Em Setembro de 1958, Torga pegou
numa selecção dos seus poemas e
registou-os num LP editado pela Or-
feu. Deixou a sua memória do mo-
mento no Diário VIII. “Gravar poesia
nossa... Entrar numa câmara de silên-
cio, ler versos, e ouvir depois a pró-
pria voz desligada do corpo, sozinha,
estranhamente exaltada ou enterne-
cida, ora grave, ora aguda, áspera e
suave no mesmo instante, mas sem-
pre aflita, a clamar na solidão da noite
como uma alma penada...”. Viagem
a Um Reino Maravilhoso põe-no no-
vamente perante nós: há a guitarra a
multiplicar-se em som, de delicadeza
de modinha a explosão sónica, há as

É um diálogo entre


almas separadas


pelo tempo – Torga


nasceu em 1907, os


Lavoisier um século


depois – mas umas e


outra presas à terra e


sempre desejosas


de sonho


vozes que se erguem do murmúrio à
exaltação, há clarinete, saxofones,
bateria, pianos, vibrafone e flauta
num par de momentos, há theremin
e há, a pontuar toda a viagem, os sons
das terras transmontanas que inspi-
ravam Torga como nenhum ou-
tro. “Nos lavados ares do monte,
tudo me excita e os versos nascem às
catadupas”, escreveu. Já em Coimbra,
a cidade onde mantinha o seu consul-
tório de otorrinolaringologia, “tiro-os
a fórceps como fetos monstruosos
que não querem viver”.
No Verão de 2018, os Lavoisier par-
tiram então para uma residência
transmontana – “Vamos criar, Patrí-
cia, vamos criar!”, dizia Roberto. “Fi-
cámos na casa de um rapaz do restau-
rante Chaxoila”, sorri Roberto. “Ía-
mos lá almoçar, uma mãozinha de
vaca, grão-de-bico. Saímos de lá algu-
mas vezes meio tocados. Comias e
bebias um bocadinho e ias”. Iam sen-
tir o calor abrasador que Torga pôs
Madalena a sofrer num dos contos
d’Os Bichos. Iam mergulhar na imen-
sidão da rocha e do verde a abraçar a
terra, ia Roberto recordar cheiros
antigos, os da infância com Natal e
Páscoa passados na terra da família,
a aldeia de Lagarelhos, em Negrais.
“Acabámos por não fazer nenhuma
música, nem tão pouco escolhemos
os poemas. Fomos só absorver, e isso
foi muito importante”. Para perceber
como fazer da poesia de Torga mú-
sica dos Lavoisier, tinham que deixar
que se entranhassem neles aquelas
“léguas e léguas de chão raivoso, eri-
çado, queimado por um sol de fogo
ou por um frio de neve”, aquele
“reino maravilhoso”, assim lhe cha-
mou Torga, e daí o título deste álbum,
habitado por homens “que olham de
frente e têm no rosto as mesmas rugas
da terra”.^
Tudo começou com um convite da
associação transmontana Covilhete
na Mão – Transa Cooperativa Cultu-
ral para participarem nas sessões
“Novas Canções da Montanha” dina-
mizadas no Espaço Miguel Torga, em
São Martinho de Anta, a aldeia natal
de Torga, no concelho de Sabrosa.
Ali actuaram em Dezembro de 2017
e, desafiados pelos organizadores a
musicarem três poemas de Torga,
interpretaram Dies Irae (1950), Co-
roai-me de espinhos (1950) e Instru-
ção primária (1964). Chegou depois
o convite para algo mais ambicioso,
um álbum inteiro.
No Verão de 2018, uma coincidên-
cia feliz. A Associação Onda Amarela,
ignorante do projecto em andamento,
convida a banda a desenvolver um
trabalho com o Conservatório Regio-

nal de Música de Vila Real. Se até ti-
nham consigo Instrução primária e os
seus versos iniciais – “Não saibas: ima-
gina.../ Deixa falar o mestre, e deva-
neia...” –, a ideia pareceu-lhes irrecu-
sável – no disco ouvem-se dois temas,
Instrução primária e Viagem, engran-
decidos, qual filarmónica progres-
siva, pelos jovens músicos do Conser-
vatório.
O álbum foi depois registado entre
o Conservatória de Vila Real e o Es-
paço Miguel Torga. A acompanhar os
Lavoisier esteve o técnico de som José
Fortes, que já acompanha a banda
desde Projecto 675, homem que em-
prestou os seus atentíssimos ouvidos
a um sem número de obras-primas
da música portuguesa (trabalhou com
a Banda do Casaco, Fausto, José
Afonso, José Mário Branco ou Carlos
Paredes). Enquanto eles registavam,
o sonoplasta e artista sonoro João
Bento percorria o território, regis-
tando as recolhas – os passos no chão,
o sino da Igreja, os sons dos pássaros
e do vento – que aprofundam a sen-
sação de lugar que atravessa Viagem
a um Reino Maravilhoso.
Nessa altura, já Patrícia e Roberto
o haviam entranhado. Guiados pelo
director do Espaço Miguel Torga, João
Luís Sequeira, percorreram os rotei-
ros torguianos. “Ele levava os poemas
e, chegados a um sítio, explicava: ‘O
Torga escreveu este poema aqui’”,
recorda Roberto. “Depois dava-o à
Patrícia. ‘Leia, leia’”. E a vocalista lia,
e os Lavoisier absorviam. Para aquilo
que imaginaram, para serem fiéis ao
seu espírito, ao seu gosto pelo acaso,
o mais importante era absorverem
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