34 | ípsilon | Sexta-feira 1 Novembro 2019
aquilo que a dádiva de Deus nos
concedeu: apresentar a nossa música
da melhor forma possível, sem mani-
festação do ego, àqueles que amamos
e ao público. A igreja é apenas uma
dimensão da nossa tradição de espi-
ritualidade. Ela estava e continua a
estar em todas as comunidades e cos-
mologias em qualquer lugar do mun-
do. É uma das dinâmicas através das
quais podemos expressar o nosso
amor e os nossos anseios e onde
podemos prestar ajuda aos outros.
Enquanto crescia na Cidade do
Cabo, apaixonou-se pelo jazz. O
jazz americano, o rock, a pop che-
gavam muito até si?
As pessoas falam sempre de África
como sendo outro lugar, mas África
faz parte do mundo! (risos) Nós era-
mos influenciados por tudo, como
qualquer pessoa. Não é por estarmos
em África; suponho que as pessoas
em Portugal passem pelo mesmo.
Tudo isto faz parte da experiência
humana. E independentemente do
que nos disserem ou daquilo em que
nos quiserem fazer acreditar, a nossa
humanidade comum é o aspecto mais
importante da nossa existência. Na
África do Sul, éramos influenciados
por tudo, e não posso negar essas
influências que refere.
A propósito dessa humanidade
comum: vivemos tempos em
que certas ideias criam
fracturas estranhas. Fala-se de
“apropriação cultural” como
uma usurpação de elementos de
uma cultura por parte de quem,
originalmente, a ela não
pertence. Por exemplo, uma
rapariga, que não seja negra,
que use o cabelo em forma de
afro.
Por causa do cabelo?!
Sim.
É difícil para mim entender esse con-
ceito. O conhecimento, e o processo
de obter conhecimento, são os mes-
mos onde quer que estejamos. Por-
tanto, não acreditamos nessas alega-
das diferenças. Como é que lhe cha-
mou? “Apropriação cultural”? Pois...
Essa não é a nossa forma de pensar a
existência humana.
A ideia não o assusta? Parece
não se coadunar com ideia de
“humanidade comum” de que
há bocado falou.
[Pausa] Não há nada de que ter medo.
O universo é um lugar seguro.
Para um miúdo negro na Cidade
do Cabo de que forma o
apartheid se sentia no dia-a-dia?
Onde quer que estejamos ou o que
estivermos a fazer, nós olhamos para
tudo e para as pessoas de forma total-
mente humana. A cor da pele não
interessa.
Sim. Mas refiro-me ao regime de
então, que dizia outra coisa.
Sim, mas isso tem de lhes perguntar
a eles! (risos)
De que forma o regime
controlava os artistas?
Lembro-me de uma vez em que foi
declarado o estado de emergência.
Fui ter com eles e disse-lhes que o
estado de emergência não me podia
afectar porque eu estava só a escrever
uma canção. (risos)
Teve muitos amigos e familiares
presos?
Muita gente sofreu às mãos do regi-
me. Mas nós percebíamos que aquilo
era só uma fase passageira... Deixe-
me tentar explicar isto de outra for-
ma: como é que se pode remover algo
do universo? Não se pode, verdadei-
ramente. Nós sabíamos isso.
Em 1962, sai da África do Sul
para a Suíça, onde conhece
Duke Ellington. Como foi esse
encontro?
Eu sou um músico de jazz, pelo que
tenho uma memória muito boa.
Ellington já nos influenciava ainda
antes de o conhecermos. Ellington
marcou toda as dimensões da música
contemporânea. Onde quer que ten-
te ir musicalmente, irá descobrir que
Ellington já esteve lá antes. Envolver-
mo-nos diariamente com a sua músi-
ca foi e ainda é uma experiência de
aprendizagem. Creio que o alcance e
a mestria da sua música ainda não
foram totalmente compreendidos.
Aqueles que estiveram mais próximos
dele e da sua música sabem da enor-
midade do seu talento.
Foi contratado para tocar
durante três anos no “Club
Africana”. Como foram esses
tempos em Zurique?
Frios, muito frios. (risos) Tínhamos
chegado de África e aquele era o pior
Inverno em Zurique dos últimos 60
anos! Se tivesse dinheiro, tinha volta-
do para África.
E as pessoas que encontrou em
Zurique?
Eram maravilhosas. Continuam a ser.
As pessoas são as mesmas em qual-
quer lugar do mundo, desde que as
reconheçamos e respeitemos a sua
forma de viver.
Em 1965, parte para os EUA,
terra do jazz.
Conheci James Baldwin em Paris pela
mesma altura em que conheci Elling-
ton. Perguntei a muitas pessoas sobre
como eram os EUA. “Hey, Mr.
Baldwin, pode dizer-me como é que
devo lidar com Nova Iorque?”.
Baldwin: “Quando chegares lá, admi-
te apenas para ti mesmo que chegas-
te a um planeta estranho do qual não
compreendes a língua”. Depois per-
guntei o mesmo a Ellington e ele dis-
se-me: “Survive...”. [pausa] Portanto,
nós recebemos inspiração e instru-
ções dos Mestres. Não é algo que se
possa encontrar nos livros.
E aterra em Nova Iorque. Que
cidade encontrou?
The Big Apple. Achei-a lenta.
Lenta?
Sim, comparando com a África do
Sul. Muito lenta. Há a ilusão de que é
acelerada. Percebi com o Ellington
que tinha de esperar 20 anos para
compreender como é lenta.
Que ilusão é essa?
Temos esta ilusão de que a velocidade
é rápida. Nós acreditamos no concei-
to da curvatura de espaço-tempo: não
há passado, não há futuro; há apenas
o agora. É assim que fazemos música,
é assim que vivemos. Há músicos que
conseguem tocar muito rápido e isso
é visto como o critério [de excelên-
cia]. Então, eu digo-lhes: “Eu consigo
tocar mais devagar do que isso”.
Se um jovem músico lhe mostrar
o quão rápido é a tocar o
instrumento, o que lhe dirá?
Dir-lhe-ei: “Tu sabes o que tocaste,
mas não o porquê de teres tocado
assim”.
Voltando a Nova Iorque: como
foram os anos lá, estudando,
tocando e criando uma família?
Nova Iorque foi excelente para mim.
Ainda é. Há muitas oportunidades
para estudar e aprender. O mundo
inteiro está lá. O que quer que se quei-
ra alcançar, está lá. Eu queria estudar,
e queria estudar com [Thelonius]
Monk. Mas era impossível, porque ele
era uma pessoa muito especial. (risos)
Por isso, decidi que iria estudar com
[Hall] Overton, que era professor na
Juilliard [The Juilliard School of
Music]. Era ele quem fazia os arranjos
de Monk. Mas não tinha dinheiro para
estudar com ele. Um dia, peguei nas
“Páginas Amarelas” e procurei por
organizações de filantropia. Havia
125! Peguei em papel, envelopes e
escrevi para todas elas: “Quero estu-
dar. Pode ajudar-me?”. Um dia, rece-
bi a resposta da Rockefeller Founda-
tion. Recebi uma bolsa e fui estudar
com Overtone. Através das “Páginas
Amarelas”!
Porque diz que Monk era uma
pessoa especial?
Basta ouvir a música dele!
Mas conheceu-o pessoalmente?
Sim, claro. Disse-lhe que era da África
do Sul e o quanto ele era uma inspira-
ção para mim. Ele olhou-me muito
rapidamente e disse: “É o primeiro
pianista que me diz isso”.
Tocou com grandes nomes do
jazz americano que...
[Interrompe] Não estamos interessa-
dos em “grandes nomes”. Isso não
está na nossa cosmologia.
Se mostrar um disco de John
Coltrane a uma pessoa, ela vai
reconhece-lo. É neste sentido
que se trata de um “grande
nome”.
Sim. A maioria dos músicos de jazz
vai para escolas de jazz, mas essa não
é a nossa [sul-africanos] única forma
de aprendizagem. Nas nossas comu-
nidades, há Mestres que se preferem
manter anónimos. E se eu tiver um
problema técnico, é a eles que vou
recorrer. Toda a gente sabe que são
eles os Mestres, mas ninguém os ape-
lida de “grandes nomes”. Essa é a
estrutura das comunidades tradicio-
nais, nas quais há sempre um sábio.
Duke Ellington era, para nós, o sábio
da aldeia africana.
Em 1990, voltou à África do Sul
a convite de Nelson Mandela.
Mantiveram contacto enquanto
estava nos EUA e Mandela
preso?
Nunca deixámos de estar próximos.
Nelson Mandela era um grande músi-
co.
Que música tocava?
Boa música.
Quando voltou à Africa do Sul,
quem foram as primeiras
pessoas que visitou?
O lixeiro da rua da minha antiga
casa. Mas não “voltei’”, porque nun-
ca saí. Nós nunca “saímos” de lado
nenhum. Estamos sempre perto uns
dos outros onde quer que esteja-
mos.
A noção de Mestre existe
também nas artes marciais.
“Artes marciais” é um termo estra-
nho. (risos) Eu estudo Budo no Japão.
Budo significa The Way of Not Fighting.
É o mesmo princípio para tudo o que
tentamos alcançar: escolher o cami-
nho para a perfeição. Em qualquer
campo, na música, medicina ou nou-
tro, esse é o processo. O Budo não
tem nada que ver com lutar. A ideia é
a mesma que vale na música: não nos
devemos esforçar para impressionar
os outros, para o show off.
Como é que se aproximou do
Budo?
O princípio é o mesmo que existe na
música, só tem um nome diferente.
Em todas as comunidades, existem
os ou as Mestres, e o conhecimento.
E quando as pessoas estão prepara-
dos para isso, o Budo aparecer-lhes-á.
O Budo existe qualquer que seja o
caminho que se use para atingir um
objectivo, é o esforço para a perfei-
ção. Isso é o Budo ou The Way. O fun-
damental é que não se faça esse esfor-
ço para impressionar os outros. E que
a pessoa se torne imbatível no seu
caminho ou método.
Continua a ir ao Japão?
Voltei de lá há dois dias.
Quanto tempo esteve lá?
Forever! Nós amamos os lugares onde
as pessoas nos amam. E amamo-las
de volta.
Como é que articula esses níveis
de espiritualidade?
Novamente: o caminho [The Way] é
o mesmo em todos eles, só existe um.
Rumi [teólogo islâmico, místico e poe-
ta persa do século XIII] disse: “Existe
apenas um único som. Tudo o resto
é eco”.
Quando era mais novo era já
uma pessoa aberta à
espiritualidade ou ignorava-a?
Se calhar, foi ela que me ignorou a
mim (risos). Ela está lá, está sempre.
É uma questão de aceitarmos o nosso
destino.
Como é que encara o mal e a
loucura no mundo? Também
fazem parte da nossa
humanidade comum, do nosso
destino?
Eu agradeço a Deus por tudo. Agra-
deço por todas as pessoas boas que
surgem no meu caminho. Mas tam-
bém agradeço pelos ladrões e charla-
tães. Tudo é uma aprendizagem con-
tínua. Eu sou um pianista, não posso
resolver os problemas do mundo.
Quando toco uma nota, não há mais
nada que possa fazer quanto a isso.
“Eu agradeço
a Deus por tudo.
Agradeço por todas
as pessoas boas
que surgem no
meu caminho.
Mas também
agradeço pelos
ladrões e charlatães.
Tudo é uma
aprendizagem
contínua”
e