ípsilon | Sexta-feira 1 Novembro 2019 | 37
“Não sei onde está
a fronteira entre
o biólogo e o escritor
de histórias porque
a biologia que faço
é muito ligada
a pessoas.
Eu não quero falar
da paisagem só
enquanto elemento
natural, a paisagem
é escrita e reescrita
por aquela gente.
Na minha concepção
não existe uma
árvore em si mesma,
existe uma árvore
na relação com
as pessoas;
e o mesmo para
os bichos”
E
Enquanto escreve um novo
livro de ficção, ambientado na
sua cidade da Beira, Moçam-
bique, no fim do período co-
lonial — um tempo de loucu-
ras e de boatos delirantes que
até tinham os suecos como inimigos
— , Mia Couto publicou uma colecção
de ensaios escritos ao longo da última
década, a maioria para serem lidos
em entregas de prémios, conferên-
cias, apresentações. Com algumas
arestas da oralidade limadas para se
fazerem escrita, não deixam de ser
textos com marcas que convidam à
leitura em voz alta, que buscam o
efeito na audiência, em deixar frases
a ecoar nos ouvidos, ou não fossem,
como explica, textos de “intervenção
cívica”.
Com um titulo que evoca William
Blake, O Universo num Grão de Areia
fala de arte, de cultura, de política, de
mecanismos de escrita, de teatro, de
Moçambique, do Brasil e de África e
está cheio de referências biográficas
(várias sobre o pai, Fernando Leite
Couto), histórias ilustrativas ou não
fosse Mia Couto um respigador de
histórias.
“Criatura de múltiplas fronteiras”
a quem “os livros chegaram depois da
vida”, Mia Couto sente-se marcado
pela “felicidade” de ter sido “criança
num desses universos em que o faz
de conta mandava mais que a própria
realidade”. E o seu lema de vida é
uma frase do antigo Presidente do
Vietname Ho Chi Minh sobre a sua
passagem pela prisão: “O que eu fiz
foi desvalorizar as paredes”.
Com tantos traços biográficos num
livro de discursos, não admira que
esta entrevista, realizada em Maputo,
num desses finais de tarde africanos
que rapidamente se torna noite cer-
rada, buscasse caminhos biográficos
para se desenrolar.
Abre o livro com um texto sobre
o seu regresso à Beira depois da
passagem do ciclone Idai. Como
está a relação com a cidade
onde nasceu?
Este regresso, depois do que pensava
ser um fim, foi vital, não só para o
livro que estava a fazer, mas para
mim. A cidade pede uma espécie de
regresso infinito. Sinto que aquela
terra me fez nascer, mas é um parto
incompleto, tenho que voltar lá, num
processo recíproco, porque faço tam-
bém nascer a minha cidade, que não
é exactamente aquela. Tem a ver tam-
bém com a Beira ser um território que
sempre me ensinou a fragilidade do
mundo. A Beira, essa Beira em que
vivi, de manhã era terra firme, ao fim
da tarde estava cheia de água, cober-
ta pelo mar — escola de como as coi-
sas são voláteis. O mundo é uma coisa
que temos de amar sem termos gran-
des certezas.
Saiu em 1972, esteve muitos
anos sem lá voltar.
Só voltei uns 20 anos depois. Tinha
medo de voltar, medo de que alguma
coisa dela não fosse completamente
verdade, que tivesse inventado dema-
siado o lugar. Ainda por cima, todos
os que iam à Beira se confrontavam
com uma cidade destruída. Aquela
zona do centro do país foi o foco prin-
cipal da guerra civil. E a cidade vivia
da relação entre a Rodésia, depois
Zimbabwe, e os serviços ferro-portuá-
rios e isso morreu quando a economia
zimbabueana morreu. Portanto,
havia uma degradação do lugar que
conhecia e que não queria revisitar,
queria guardar aquela imagem de
infância e adolescência. Acabei por
ir, junto com outros amigos da Beira,
e foi muito bom esse reencontro.
Como é a que relação evoluiu?
Fui revisitando a cidade, fui perce-
bendo que a cidade tinha uma verda-
de que eu não tocara. Porque a socie-
dade colonial colocava a parte branca
da cidade num nuvem. Apesar de
sempre ter vivido num lugar de tro-
cas, naqueles bairros como o Esturro,
Matacuane, lugares dos brancos mais
pobres, zona tampão entre o mundo
dos brancos e o mundo dos negros,
nunca pertenci completamente ao
outro lado; eu era um visitante. Nas
vezes várias em que fui rever a cidade
foi, sobretudo, para perceber a dis-
tância que havia entre mundos dife-
rentes. Aquela cidade tinha várias
cidades dentro.
Já estava a escrever o livro sobre
a Beira antes do ciclone, mudou
alguma coisa depois?
Mudou dentro de mim. Dei-me conta,
de maneira alvoroçada, que a cidade
soube se refazer por ela própria, não
ficou à espera de grandes donativos
do exterior. Apanhara um susto,
como se a minha cidade tivesse sido
riscada do mapa e a minha infância
levada por uma dessas marés que a
cidade abraça todos os dias. Isso aju-
dou-me a encarar a história, mas não
penso que tenha alterado o que que-
ria fazer. Mas foi um tempo precioso
para perceber quanto eu tinha de ser
mais contido na história.
É ficção?
É uma história de ficção que se baseia
em personagens e lembranças minhas
de entre 1971 e 1974, o último período
da dominação colonial. A guerra era
sentida como longínqua, como se
acontecesse num outro país, apesar
de sabermos que existia — pelos sol-
dados que chegavam de Portugal,
pelos soldados moçambicanos recru-
tados, mas que depois desapareciam,
como se fossem para outro mundo.
De repente, começou a haver ataques
nas imediações da cidade e aquela
sociedade percebeu que só podia
haver resposta por via da loucura. A
cidade enlouqueceu numa espécie de
delírio permanente, em que todos os
dias havia um boato, uma captação
delirante do mundo. Quando se des-
cobriu que os suecos apoiavam a
Frente de Libertação de Moçambique
— ao descarregar um barco da Suécia
percebeu-se que havia ali material
que era dirigido para a Frelimo — ,
imediatamente se anunciou um
rumor de que havia suecos, saídos
daquele barco, que espalhavam rebu-
çados envenenados para as crianças.
E avisavam-nos: “Vocês, quando
virem um sueco” e nós não sabíamos
o que era um sueco e eu adormecia a
imaginar esse monstro que era um
sueco.
Como se vai chamar esse livro?
Não posso dizer, porque todos os dias
é diferente. À medida que vou perce-
bendo o livro, vou criando balizas.
Como não tenho muita disciplina e
sou levado muito pelas personagens,
aquela baliza do título ajuda-me a
conter a história. Passou de um longo
título, que era Antes de nascer vi rios e
mares, para Alguém. Mas sei que não
vai ser assim, porque não é um bom
título.
Quando será editado?
Para terminá-lo preciso de fazer só
isso. Tenho uma vida muito dispersa.
Sou biólogo, trabalho como biólogo
todos os dias, colaboro em coisas
culturais, mantenho uma fundação
cultural e artística e escrevo. Portan-
to, tenho de ficar três, quatro meses
só a escrever. Estou a pensar fechar-
me num sítio onde possa só viver
nesse livro. Como se emigrasse para
aquele território imaginário. Se isso
acontecer, em Fevereiro tenho o livro
acabado.
Fala em O universo num grão de
areia que a sua família era
pequena. Num país como
Moçambique, onde a família é
extensa, como foi crescer assim?
Era uma coisa que me fazia sofrer,
vivíamos ali como se a humanidade
tivesse acabado de nascer, havia um
Adão e Eva e não havia mais. Não
conheci nenhum dos meus avós e
isso me fazia falta. Todos os meus
amigos tinham uma família alargada.
Mas isso foi resolvido com a sapiên-
cia dos meus pais, faziam um jogo
teatral, inventavam-se tios e primos
e avós, o que foi fundamental para
percebermos isso a que se chama
ficção, que na minha casa era vivida
como realidade.
Os seus pais emigraram para
Moçambique. Foram directos
para a Beira?
O meu pai chegou primeiro. Aparen-
temente tinha actividades políticas
na cidade do Porto e o regime colo-
nial achava que, sendo Moçambique
tão longínquo, os tipos que eram
contra o regime ficavam aqui bem.
Aqui havia liberdades que não havia
em Portugal. Os livros do Jorge Ama-
do sempre foram vendidos aqui.
to e a memória
stro sueco
e