38 | ípsilon | Sexta-feira 1 Novembro 2019
Uma série de livros que estavam
proibidos em Portugal circulavam
aqui. O meu pai foi para a Beira por-
que ali tinha um núcleo de gente;
para a Beira emigraram arquitectos
do Porto que depois foram respon-
sáveis por introduzir uma arquitec-
tura mais ousada.
Quando em 1972 veio para
Maputo, os seus pais também
vieram?
Não. Vim sozinho primeiro, eles vie-
ram já em 1974. Vivi numa república
de estudantes, mas foi importantíssi-
mo para mim ter saído de casa dos
meus pais.
Como foi o choque da mudança
da Beira para Maputo?
Maputo, na altura Lourenço Marques,
era uma cidade diferente, bem mais
relaxada do ponto de vista das rela-
ções raciais. A Beira tinha dois mode-
los, os dois maus, os modelos do
apartheid da Rodésia e o da África do
Sul que reforçavam a ideia da separa-
ção racial. Então, senti-me perdido,
no bom sentido. Fiquei embriagado.
Havia uma luta e eu vinha, não para
estudar, mas para me embrenhar nes-
sa luta. Abençoado pelos meus pais,
que não achavam isso um desvio,
principalmente o meu pai. Ele sabia
que ia ser assim e eu sabia que tinha
autorização dele para me perder des-
se curso e ganhar uma relação mais
profunda com a vida, com a terra,
com a liberdade, com lutas que ele
também abraçava. Quando cheguei
aqui, havia um movimento estudantil
bem forte, que era antifascista. Era
um movimento de filhos de gente
burguesa que tomavam como priori-
dade a luta pela democracia e tinham
uma certa dificuldade em relacionar
isso com a luta pela independência.
Havia também em Moçambique
a ideia de uma independência
liderada por brancos, à moda do
que Ian Smith liderava na
Rodésia?
Na Beira, era muito forte, era um
movimento que fazia a apologia dos
naturais, dos filhos de gente branca
que já tinha nascido em Moçambique.
A ideia de “nós, os brancos naturais
“Se tivesse os dois
pés na literatura
acho que
enlouquecia. Com o
tratamento que dão
quando se tem
sucesso na literatura
é muito fácil pensar
que se é o centro do
mundo, levar aquilo
muito a sério e,
sobretudo, levar-se
muito a sério”
de Moçambique, temos interesses
divergentes de Portugal, mas também
não temos os mesmos interesses da
população negra, portanto, há uma
outra via que pode ser traçada”. Em
Maputo, isso não era claro, havia, mas
com menos representação. Fui-me
envolvendo em vários grupos de luta
estudantil até que eu e alguns colegas
pensámos: “Isso só faz sentido se a
nossa luta estiver em consonância
com a luta da frente de libertação” e
conseguimos ligações que nos apon-
taram para uma luta mais focada.
Mas a sua luta foi sempre
intelectual ou pensou na luta
armada?
Na altura, havia gente que se oferecia
para a luta armada, eu nunca pensei
nisso. Embora tivesse esse sonho —
tinha um cartaz do Che Guevara e
tudo. Eu só pensava em ter farda para
conquistar as meninas [risos]. Porque
quando chegava a altura de pensar
em ter uma arma na mão, eu tremia.
Em 1974, alguns dos meus colegas
fugiram, foram para a Tanzânia e tive-
ram treino militar, mas, nessa altura,
não fazia muito sentido, o regime
colonial tinha caído e eu, como já
tinha ligação à Frelimo, pedi instru-
ções para saber onde devia ficar. Dis-
seram-me que deveria fazer o curso
de Medicina, mas logo a seguir veio
outra instrução para me infiltrar na
informação e foi o que fiz. Não tem
nenhuma glória o meu período revo-
lucionário. Só teve glória no sentido
em que imaginava que tinha impor-
tância para aquela luta que podia
mudar o mundo. Hoje percebo que a
minha importância era muito relativa
e que a luta tinha essa crença total
porque era muito redutora, com uma
análise muito simplista do mundo.
Não a renego, mas acho que é preciso
perceber onde falhámos.
O seu pai trabalhava num jornal
na Beira?
Trabalhava e quando veio para Mapu-
to, em 1974, veio trabalhar no Notí-
cias. Houve uma altura em que traba-
lhava ele, o meu irmão mais velho e
eu. O papel da informação nesse
período da transição foi fundamental
e não está bem estudado. A Frelimo
também se apropriou de uma história
única — o que não foi feito directa-
mente pela Frelimo não existe — ,
mas há várias outras contribuições
que foram importantes.
Também participou na criação
dessa história mítica da
Frelimo...
Sim, sou culpado. Não posso falar da
Frelimo assim tão à vontade porque
durante anos fui um dos construto-
res dessa ideia única de um movi-
mento que não era capaz de olhar
para o lado e perceber que há outros
mundos.
Conta no livro que chegou a
participar num retiro de poetas
para escrever um novo hino
para Moçambique?
Não é uma coisa que me envergonhe.
A história é engraçada porque des-
mistifica aquela ideia sagrada de
como os hinos são produzidos. Este
foi produzido de maneira divertida.
O Samora [Machel] tinha uma ideia
muito militar das coisas que mandava
fazer e deu ordem a quatro poetas e
quatro músicos para se fecharem
numa casa. Era uma mansão com
piscina , com comida e bebida, num
momento em que não havia nada. Eu
fazia taparueres de comida que à noi-
te entregava à Patrícia, a minha
mulher, para levar para casa. Estáva-
mos a viver tão bem que nos esque-
cíamos porque é que estávamos lá.
O novo livro é
uma história
de ficção que
se baseia em
personagens
e lembranças
na Beira de
entre 1971 e
1974, o último
período da
dominação
colonial
Mas produzimos propostas de hinos
e uma dessas propostas foi aquela que
ficou, de facto.
Por que não ficou no jornalismo
e resolveu ir estudar Biologia?
Quis voltar para a universidade por
várias razões, primeiro porque tinha
um sentimento de que a luta que
abracei não estava a produzir resul-
tados verdadeiros: entre a prática e
as palavras havia uma distância que
não me agradava. Foi a altura em que
começou a ser introduzido no país o
esboço de formação de uma elite polí-
tica copiada da União Soviética, com
lojas especiais, com tratamento espe-
cial, e a legitimação de que “somos os
donos da liberdade” — não me agra-
dava. Depois, perdi o gosto pela pro-
fissão porque gostava de andar pelo
país fora a recolher histórias e perdia
isso para ser director do jornal. Não
tenho jeito para dirigir ninguém. E o
jornalismo em que estava envolvido
produzia a mentira de que éramos
portadores de uma mensagem verda-
deira, a única verdade.
E porquê a Biologia?
Ainda me inscrevi em Medicina, mas
uma directora da faculdade, a quem
abençoo todos os dias, disse que tinha
de começar do princípio, apesar de
eu já ter feito dois anos e meio. Foi
óptimo porque repensei e decidi-me
pela Biologia, que é o que eu sempre
quis e não sabia. Nasci com uma rela-
ção encantada com as árvores, com
o espaço natural.
Sempre manteve essa carreira
de biólogo, mesmo com o
sucesso como escritor?
Maldito sucesso se me afastasse disso!
Gosto muito de ter esse pé noutro
campo. Se tivesse os dois pés na lite-
ratura acho que enlouquecia. Com o
tratamento que dão quando se tem
sucesso na literatura é muito fácil
pensar que se é o centro do mundo,
levar aquilo muito a sério e, sobretu-
do, levar-se muito a sério. Não quero
isso. Quero ter uma relação de quem
vai lá visitar um amor que se tem, mas
não vive naquela casa.
A Biologia também lhe permite
arranjar histórias?
e