Público - 01.11.2019

(Ron) #1
Público • Sexta-feira, 1 de Novembro de 2019 • 9

ESPAÇO PÚBLICO


Os festejos do


divórcio da Joana


N

a advocacia de direito de família,
costumava dizer-se que o
casamento é uma doença mas
que, felizmente, há um remédio:
o divórcio. Assim o pensava a
Joana, que, passados dois anos da
data do seu divórcio, partilhou
uma publicação na rede social
Facebook com os seguintes
dizeres: “A festejar a liberdade!!...
Livrei-me de um invecil!!... Segundo ano.”
A acompanhar estas efusivas aÆrmações
estavam três fotograÆas onde se podia ver a
Joana em animado convívio a festejar a
efeméride, incluindo uma na qual se via um
bolo onde estava escrito — provavelmente
em letras adocicadas — “Dois anos de
felicidade”.
O João, ex-marido, seguramente não
gostou de ver a felicidade da ex-mulher, mas
não foi disso que se foi queixar ao tribunal.
Queixou-se o João da expressão “invecil,
leia-se imbecil”, por, em face do contexto e
objecto da comemoração, ser evidente que
era ele o imbecil de quem a Joana se livrara.
Para o João, a Joana praticara um crime de
difamação, que pune com uma pena de
prisão até seis meses ou uma pena de multa
até 240 dias quem formular sobre outra
palavras ofensivas da sua honra ou
consideração. Ao referir-se a ele como um
imbecil, a Joana tinha o intuito de denegrir a
sua imagem e de atingir a sua honra,
consideração e dignidade. Deveria ser
julgada e condenada!
O Ministério Público também não gostou
dos festejos da Joana e solidarizou-se com o
João e acompanhou a acusação pelo crime
de difamação contra a Joana. Mas a Joana, já
com dois anos de felicidade, não estava para
aturar mais imbecilidades e requereu a
abertura de instrução, isto é, pediu que um
juiz analisasse toda a situação e, no Ænal,
concluísse que não tinha havido nenhum
crime e que não se justiÆcava levá-la a
julgamento.
E teve sorte: o juiz de instrução considerou
que a utilização da palavra imbecil,
publicada no Facebook, não atingia a
credibilidade, a honra e consideração do
João enquanto homem, já que não era mais
do que a aÆrmação, naquele contexto, de
que os dois anos em estádio de liberdade
resultavam do facto de a Joana se ter livrado
de alguém, no caso o João, que cerceava a
sua liberdade, “não se vislumbrando assim na
expressão qualquer sentido, muito menos
exclusivo, de ofender, ou seja, não se vislumbra
que esteja em causa uma expressão utilizada
para gratuitamente e em primeira linha
achincalhar e rebaixar a honra e o bom-nome

do assistente”. E ordenou o arquivamento do
processo.
O João, provavelmente, sentiu-se um
imbecil e decidiu recorrer para o Tribunal da
Relação de Guimarães (TRG) pedindo que
lhe dessem razão: a Joana tinha ofendido a
sua honra e consideração e devia ser julgada.
Debruçaram-se sobre o tema os juízes
desembargadores António Teixeira e Paulo
Costa SeraÆm, no dia 30 de Setembro, que
sublinharam que o termo imbecil “não
encerra exclusivamente qualquer juízo
psicopatológico, muito menos no caso
concreto foi nesse quadro a expressão
proferida, antes o foi num quadro de
entendimento referente a quem é fraco de
espírito e que não tem bom senso, ao ponto de
ser fundamento libertador”. Por outro lado,
lembraram que o direito penal só deve
intervir nas relações sociais em último caso,
devendo ser excluídas da protecção
jurídico-penal as condutas que não
representam uma lesão suÆcientemente
grave de um qualquer bem jurídico. Para o
TRG, não havia dúvidas de que o adjectivo
“imbecil” escrito
naquele post da
página do Facebook
da Joana, “visando”
o João, não
consubstanciava “a
conduta mais
correcta ou o
comportamento mais
civilizado”. E tanto
assim era que o João
se sentira
pessoalmente
atingido pela
mesma, o que o
levara,
legitimamente, a
apresentar a queixa
contra a sua
ex-mulher. Porém,
não obstante se
reconhecer que se
tratava de um “vocábulo desagradável,
indelicado e pouco cortês”, e que, noutras
circunstâncias, poderia ter subjacente uma
carga ofensiva, “podendo até configurar a
prática de um crime”, o certo é que, naquele
concreto contexto, a expressão em causa
não tinha “a virtualidade de alcançar um
patamar mínimo de gravidade que lhe
conferisse dignidade penal”. Imbecil, nesta
situação, no fundo, era o mesmo que tolo,
parvo, palerma, idiota. Não podia,
naturalmente, ser um crime. E o TRG
mandou — e bem — a Joana em paz.
O João, pelo seu lado, aguarda com alguma
ansiedade os festejos do 3.º aniversário do
divórcio...

A crónica
de um divórcio
celebrado
no Facebook
que acabou
nos tribunais

Advogado. Escreve à sexta-feira

Francisco Teixeira da Mota
Escrever Direito

xenófobas, nesse saco a farinha não é muito
díspar.
O que motivou o voto contra destes
eurodeputados é a diferença que consideram
fundamental entre um “migrante económico”
e um “refugiado”. Como se não existissem
direitos humanos e se pudesse negar o
salvamento a quem se afoga por ser um
“migrante económico”. É isto a Democracia-
-Cristã? Não há desculpas.
A defesa destes eurodeputados foi tímida,
porque a posição é simplesmente
indefensável, ainda mais quando comparada
com os restantes colegas de partido que
recusaram alinhar com a extrema-direita. Mas
uma das vozes que procuraram explicar o
inexplicável foi a de Adolfo Mesquita Nunes
aos microfones da TSF.
O argumento principal, segundo Mesquita
Nunes, é que há “divergências na forma como
se resolvem os problemas: o tratamento a dar
às organizações não-governamentais (ONG); o
que fazer com as redes de tráÆco humano e a
distinção entre refugiados e imigrantes”. É
exatamente isso que está em causa, mas a
defesa é uma conÆssão: são os mesmíssimos
argumentos da extrema-direita para perseguir
as ONG, criminalizar a ação humanitária de
salvamento de migrantes e impedir os navios
com migrantes a bordo de atracar nos portos
europeus. A razão para que continue a
persistir a imensa rede de tráÆco humano é o
desespero de quem encontra muros quando
devia encontrar respostas.
A divergência existe e é de fundo. É sobre
como nos deÆnimos
enquanto
humanidade, sobre o
papel que temos
perante o sofrimento
de outros. E como
nos comportamos
nos momentos-limite
em que temos de
escolher se queremos
ou não salvar as vidas
de quem nos estende
a mão.
A ativista Anabel
Montes, da tripulação
do navio Open Arms —
o navio com 134
migrantes que o
antigo ministro
italiano Matteo
Salvini impediu
durante semanas de
atracar no porto de Lampedusa —, resumiu o
que sente quem escolhe salvar vidas no
Mediterrâneo: prefere ser presa a ser
cúmplice. Os cúmplices, sabemos agora, fazem
maioria no Parlamento Europeu.

Presidente do Grupo Parlamentar do
Bloco de Esquerda. Escreve à sexta-feira

Pedro Filipe Soares


Como é possível?


O

Parlamento Europeu rejeitou o
poio a missões de salvamento e
resgate no mar Mediterrâneo. A
desumanidade cantou vitória com
gritos da extrema-direita, que
ganhou a maioria que se julgava
impossível. A Europa já não era
sinónimo de solidariedade, mas
agora despiu-se de dignidade. Os
valores da humanidade agonizam
com o avanço do medo e do ódio.
O Mediterrâneo é um gigantesco cadafalso
que levou milhares de vidas nos últimos anos.
Quem o enfrenta, em pequenos barcos e
probabilidades reduzidas de sucesso, foge da
guerra, dos centros de detenção da Líbia, da
tortura e da escravidão, da violência sexual.
Foge da morte, que nunca deixa de estar à
espreita, tentando a sorte na lotaria cruel da
passagem marítima.
Quem consegue escapar à morte encontra
na Europa a negação da vida. A perseguição
de quem se recusa a deixar outros a morrer
no mar, os campos de detenção com barreiras
para manter dentro as pessoas e fora os
direitos humanos. Ou a celebração da falta de
solidariedade internacional que desconsidera
a cooperação entre os países para receber
quem nos procura.
Julgava impossível assistir a essa
demonstração de imensa falta de empatia
com quem tanto sofre, essa ausência de
humanidade para com homens e mulheres
como nós ou para com crianças como as
nossas. Mas esse é um dos problemas, não é?
O valor da vida ou a desvalorização dela se
vier do lado de lá do mar. “Os de lá”,
“aqueles”, “os outros”, essa divisão que
regista a diferença, que separa que merece de
quem se desmerece. A defesa perante uma
“invasão” que só existe em cabeças fechadas e
mentes tacanhas e nos deixa cada vez mais
pobres porque cada vez menos humanos.
Que esse caminho tenha chegado a maioria
no Parlamento Europeu não é tanto a marca
da extrema direita, mas de quem lhe
escancara as portas ao ódio e lhe dá a mão ao
medo. Nesses votos há os de eurodeputados
portugueses, como Nuno Melo e Álvaro
Amaro, que ajudaram a esse resultado cruel.
Assim se percebe por que há meses o centrista
naturalizava o Vox e as suas posições

A Europa já
não era
sinónimo de
solidariedade,
mas agora
despiu-se
de dignidade

Quem consegue escapar
à morte encontra na Europa
a negação da vida.
Os cúmplices, sabemos
agora, fazem maioria
no Parlamento Europeu
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