10 • Público • Sexta-feira, 1 de Novembro de 2019
POLÍTICA
As palavras que os partidos escolhe-
ram dizer ontem no encerramento do
debate sobre o Programa do Governo
dão pistas sobre as relações que se
vão estabelecer na nova legislatura.
Funcionam como uma chave de lei-
tura para os quatro anos que agora se
iniciam — ou dois, como prevê Rui
Rio. Se o Governo pede à esquerda
que deixe claro que rejeita uma “trai-
ção ao eleitorado”, os seus antigos
parceiros de solução governativa pre-
ferem recusar “passar cheques em
branco” e optam por criticar os sinais
de “equilibrismo” que o PS tem dado.
Já o PSD, que prometeu ser “implacá-
vel”, também anunciou que não
seguirá a política do “bota-abaixo”.
Pisca-pisca, ziguezagues, convergên-
cia, namoros e traições. O léxico da
nova legislatura ainda tem qualquer
coisa de “geringonça”.
No início do relacionamento, a
pressão. No primeiro dia de debate
sobre o programa, PCP e BE não gos-
taram de ouvir António Costa fazer
contas à sua sobrevivência, mostran-
do que se sentia seguro porque, para
o Governo ser derrubado no Parla-
mento, era necessário que toda a
direita se juntasse à esquerda.
Ao segundo dia, o aviso. Foi Augus-
to Santos Silva, agora número três do
Governo, quem encerrou o debate e
deÆniu os moldes em que a nova
legislatura se vai desenhar, com críti-
cas à direita e avisos à esquerda, num
discurso alinhado com o que António
Costa tinha proferido dias antes.
“Aviso” foi mesmo a palavra utiliza-
da pelo ministro de Estado e dos
Negócios Estrangeiros, que fez pen-
der a espada, de forma clara e directa,
por cima dos partidos da esquerda.
Disse Santos Silva que as eleições dei-
xaram “uma lição” (se houver diálo-
go, há resultados) e “um aviso” (uma
coligação negativa seria uma traição).
“Só é possível retirar as condições
básicas de governação ao Governo do
PS através da constituição de uma
coligação negativa e contranatura
entre o centro-direita e direita e todas
as forças à esquerda do PS — e todos
sabemos, na maioria parlamentar,
que isso seria uma traição ao nosso
eleitorado”, alertou o governante.
Para a posteridade, o ministro dei-
xaria a ideia de que este Governo não
andará a virar-se para ambos os lados
do hemiciclo recusando uma “lógica
de pisca-pisca” que vá “manobrando
por aqui ou por ali consoante as
necessidades e as oportunidades”.
Santos Silva mudaria as palavras,
mas diria o mesmo que Costa disse na
comissão nacional do PS, em Santa-
rém, no sábado, quando defendeu
que estão “enganados os que pen-
sam” que andará “aos ziguezagues”.
Costa também diria naquela tarde
que a opção por continuar a falar para
a esquerda foi “estratégica”. Santos
Silva, no debate, referiu o mesmo,
garantindo que comete “erros de aná-
lise” quem achar que o PS quer
“manobrar tacticamente, buscando
em cada momento os equilíbrios
necessários para a sobrevivência”.
As palavras escolhidas pelos gover-
nantes — “amigo não empata amigo”,
no caso de Costa, e “traição ao eleito-
rado”, no caso de Santos Silva — aca-
bariam por cair com estrondo entre
a esquerda, obrigando a um retomar
de pontes para que a negociação não
comece com o pé errado.
Sem cheques em branco
Até ao momento em que fez a pressão
Ænal, Santos Silva tinha tentado mos-
trar que o Æo condutor seria o “diálo-
go”. “Um diálogo frutífero e continua-
do, capaz de garantir a estabilidade
governativa ao logo de toda a legisla-
tura” para que possa haver “uma
agenda progressista”.
O tom mais conciliador sairia no
entanto por Ana Catarina Mendes, a
líder parlamentar do PS, que fez um
apelo insistente nesse sentido e pro-
meteu que será a sua bancada a cons-
truir no Parlamento “todas as pontes
necessárias para que a plataforma em
ocasiões nos próximos quatro anos.
Ideia semelhante foi deixada pelo
PEV, que frisou que há “muitos ‘mas’”
no Programa do Governo. Ainda
assim, José Luís Ferreira deixou uma
certeza em jeito de resumo: “Enquan-
to houver estrada para andar, cá esta-
remos, por perto, sempre que a estra-
da seja no caminho certo.” Costa
acenou que sim. E ainda ouviu uma
ideia semelhante do PAN: “O PAN rei-
tera a sua vontade e disponibilidade
para trabalhar com os partidos que
compõem este hemiciclo, procuran-
do encontrar pontes de convergência
que contribuam para fazer avançar o
Traição, diálogo ou bota-abaixo.
Pistas para uma nova legislatura
No encerramento do debate sobre
o Programa do Governo, que não chegou
a ir a votos, os vários partidos deram
indicações de qual vai ser a temperatura
política nos próximos quatro anos
Parlamento
Liliana Valente
te do BE, haverá áreas-chave para as
conversas que vão da habitação à saú-
de, passando pelo investimento em
serviços públicos. Ficaria ainda dada
a garantia de que o partido não pro-
tagonizará uma “fuga aos compro-
missos que contam”, mas também
não passará “cheques em branco”.
Jerónimo de Sousa seria mais claro,
dizendo que o Programa do Governo
tem “formulações que indiciam solu-
ções de sentido negativo ou até retro-
cessos” e enfrenta a “grande contra-
dição entre o que proclama e o que
poderá ser concretizado”. E isso há-
de levar à oposição do PCP em muitas
que o Governo assenta seja maioritá-
ria”. Apesar disso, não se coibiu de
deixar uma crítica ao Bloco, desvalo-
rizando a “demasiada importância”
que a líder do Bloco, Catarina Mar-
tins, dá a “papéis escritos”.
Catarina Martins até lamentou a
falta de acordo para a legislatura, sem
se referir à forma, defendendo que o
que é preciso fazer no país “não será
obra de um ano, nem de dois”. Mas
diria mais. Numa crítica à opção de
Costa, havia de assegurar que o que
falta não poderá ser “resultado de
equilibrismo parlamentares sem fôle-
go para grandes mudanças”. Por par-