Público - 01.11.2019

(Ron) #1
ípsilon | Sexta-feira 1 Novembro 2019 | 43

Cinema


Estreiam


Xavier Dolan a


empalidecer


Em linguagem comum: um
“pastelão” muito aborrecido,
muito cheio de si próprio e,
no entanto, com um olhar
quase indiferente sobre tudo
(histórias e personagens) o
que tem para mostrar. Luís
Miguel Oliveira

A Minha Vida com John F.
Donovan
The Death and Life of John F.
Donovan
De Xavier Dolan
Com Jacob Tremblay, Kit
Harington, Natalie Portman, Susan
Sarandon

mmmmm


O primeiro filme em língua
inglesa do canadiano (do Québec)
Xavier Dolan parece marcar
também o empalidecimento da
sua estrela, e subitamente parece
longínquo o tempo em que fazia
figura de coqueluche e boy
wonder. Para os que sempre
tenham visto com cepticismo o
“fenómeno Dolan” não há
propriamente surpresa, e A
Minha Vida com John F. Donovan,
espécie de prova de admissão à
Hollywood “A”, cheio de vedetas
de primeira grandeza, até pode
nem ser o seu pior filme mas é por
certo o mais sensaborão e
conformista. Do seu gosto pelo
melodrama, sanguíneo, arraçado
de soap opera e tendencialmente
over the top (vide Mommy), que na
melhor das hipóteses fazia dele
uma réplica canadiana de
Almodóvar (menos talentosa e,

sobretudo, com muito menos
“mundo”), sobra aqui só um
punhado de clichés sisudos e
exangues, dados com a pompa do
melodrama de “prestígio”.
História da relação epistolar entre
um miudo e um actor famoso, gay
publicamente não assumido por
receio de danos na sua imagem
(carreira), o filme avança entre
flash backs convencionais e
ilustrativos (o miudo é agora um
jovem escritor bem sucedido) e a
constante distração de
personagens a mais com
profundidade a menos (a mãe
interpretada por Natalie Portman,
por todos os exemplos). Em
linguagem comum: um “pastelão”
muito aborrecido, muito cheio de
si próprio e, no entanto, com um
olhar quase indiferente sobre
tudo (histórias e personagens) o
que tem para mostrar.

Clichés sisudos e exangues, dados com a pompa do melodrama de “prestígio”

AS ESTRELAS
DO PÚBLICO

Jorge
Mourinha

Luís M.
Oliveira

Vasco
Câmara

a Mau mmmmm Medíocre mmmmm Razoável mmmmm Bom mmmmm Muito Bom mmmmm Excelente

Asako I e II mmmmm mmmmm mmmmm
Dor e Glória mmmmm mmmmm mmmmm
Um dia de Chuva em Nova Iorque mmmmm mmmmm mmmmm
Divino Amor mmmmm – mmmmm
Joker mmmmm mmmmm mmmmm
Judy mmmmm – mmmmm
A Minha Vida com John F. Donovan – mmmmm –
Na Praça Pública – mmmmm mmmmm
Parasitas mmmmm mmmmm mmmmm
O Traidor mmmmm mmmmm mmmmm
Ventos de Agosto mmmmm – mmmmm
Vitalina Varela mmmmm mmmmm mmmmm

a primeira quase com o dobro da
idade da outra. É a partir do
“encontro improvável” das duas,
na apresentação de um livro de
Eduarda, que tudo começa —
funcionando o acontecimento
como uma espécie de íman que aos
poucos vai atraindo as restantes
personagens em sucessivos
movimentos de avanços e recuos
no tempo e na geografia. À medida
que a narrativa progride as
personagens vão-se revelando nas
suas ligações, sobretudo no que as
liga a Eduarda.
Um dos aspectos interessantes
de Lisboa, Chão Sagrado é a
singularidade da linguagem: por
vezes arrojada, coloquial, versátil,
mas sempre com um cuidado bem
disfarçado, apesar de nem sempre
conseguir escapar a um ou outro
lugar-comum desnecessário numa
escrita que se adivinha um pouco
apressada. A linguagem
desbragada, com cenas de sexo
mais ou menos explícito,
chamando as coisas pelos nomes,
não é, como se sabe, comum na
literatura portuguesa recente. É
talvez por isto que o livro traz à
memória outros dois romances,
embora em termos de qualidade
literária da linguagem (e não só)
lhes fique aquém: Maria dos Canos
Serrados (Alfaguara, 2013), de
Ricardo Adolfo, e O Meu Amante de
Domingo (Tinta-da-China, 2014), de
Alexandra Lucas Coelho. O facto de
algumas personagens serem de
origem brasileira, abre um outro
universo de possibilidades
semânticas (aliás referido algumas
vezes ao longo da narrativa ao
mencionarem-se as dificuldades de
entendimento por parte dos
imigrantes brasileiros). Um
exemplo de como o narrador se
dirige à personagem Noé, um
jovem brasileiro: “Garoto, ganha
juízo, atina a tola, deixa de ser
burro, baza, põe-te no caralho. Vai
para a puta que te pariu. E agora
em brasileiro a ver se não te escapa
mesmo nada, se você entende tudo
direitinho: largue de ser besta,
tome tento, suma, se aprume, se
plante, se ligue, fique esperto, se
escafeda, cape o gato, se pique na
lapa do mundo, tome chá de
sumiço, você nem entende ela!
Largue o osso, largue!”
Serve também este exemplo para
referir o aspecto mais interessante
do livro: o narrador “perverso” que
não está ali apenas para contar a
história. Ele assume também a
função de mandar recados,
advertir e achincalhar algumas
personagens, sobretudo as que se
aproximam de Eduarda: “És um
falhado, Noé, saca alguém no
Tinder, afasta-te da Eduarda. Seu
filho da puta.” É um narrador
vingativo que por vezes parece
querer confundir-se com a
personagem Mariana, ou que pelo
menos assume as suas dores da
rejeição, e que ao narrar o faz
como se contasse toda a história
para a personagem Eduarda, a tal
que rejeitou Mariana: “O tempo
passava e Mariana insistia em
recordar-te.”

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