Público - 01.11.2019

(Ron) #1

42 | ípsilon | Sexta-feira 1 Novembro 2019


Livros


Ficção


A ordem vigente


Os “troubles” na Irlanda do
Norte tcomo lugares e
situações abstractas, um
ambiente distópico em que
as personagens não têm
direito a nome. Foi o Booker
de 2018. Helena Vasconcelos

Milkman
Anna Burns
(trad. Miguel Romeira)
Porto Editora

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A ação de
Milkman, de
Anna Burns,
autora irlandesa,
nascida em
Belfast e educada
como católica,
desenvolve-se no
ambiente dos
“Troubles”, as lutas que, nos anos
70 do século XX, custaram a vida a
mais de 3500 pessoas, entre civis e
militares, na Irlanda do Norte.
A partir de uma realidade
dramática, cujas marcas e traumas
ainda assombram esta “outra”
Irlanda, Burns constrói uma ficção
peculiar. Tudo se passa numa
cidade sem nome, quando as
facções dos Unionistas e dos
Nacionalistas se guerreiam sem
quartel. Ninguém está
devidamente esclarecido sobre as
razões, os propósitos, as estratégias
dos conflitos. Ninguém parece
estar a par de quem são os
revoltosos, qual a sua intenção ao
fazerem explodir igrejas, casas e
ruas, porque assassinam pessoas e
destroem, aleatoriamente, bens e
serviços.
Em Milkman, o cenário e os
acontecimentos “históricos”, reais,
transformam-se em lugares e
situações abstractas, num ambiente
distópico, em que as personagens
não têm direito a nome — os nomes
não são “permitidos por serem
demasiado do país do outro lado do
canal” — e são reconhecíveis,
apenas, pela relação que mantêm

entre elas. A própria narradora é
apenas “ a irmã do meio” e os
outros são, por exemplo, o
repelente “cunhado numero um”,
que espalha boatos e ameaças, a
“terceira irmã” que passa o tempo a
beber com as amigas, o “terceiro
cunhado” que adora mulheres e
desporto, o Coiso e Tal que, logo na
primeira frase, mostra quão
ameaçador pode ser e um número
elevado de outros protagonistas,
todos encerrados no território que
é uma cidade em guerra, com os
seus guetos bem delimitados numa
“atmosfera psicopolítica com todas
as regras de lealdade, de
identificação tribal”, onde
predominam regras (que não se
sabe de onde vêm) sobre o que se
pode fazer e o que não se pode
fazer, quais os programas de
televisão a ver, a ponta de lá e a
ponta de cá da estrada, a manteiga
certa e a errada, “o chá leal à causa
“ e o “chá traidor”, a pronúncia de
letras específicas, as questões das
bandeiras e dos símbolos. Todos se
espiam entre si, todos escondem os
pensamentos e opiniões, todos
tentam desvendar o que vai na
cabeça dos outros. É como um jogo
de que não se conhecem as regras e
onde todos perdem, todo o tempo,
e em que a invisibilidade, o
apagamento constituem a única
segurança possível. Neste ambiente
sufocante, uma jovem que gosta de
ler enquanto caminha, que é
abordada por desconhecidos, sobre
quem correm boatos, está
permanentemente exposta a graves
perigos. A mãe quer casá-la
rapidamente — “como vai ser
quando perderes a graça e ninguém
te quiser”, pergunta-lhe, numa das
suas arengas moralistas- as irmãs e
cunhados vigiam-na e
admoestam-na repetidamente, o
“namorado mais ou menos” dá-lhe
algum conforto, mas tem os seus
próprios problemas. Esta heroína
acidental possui a voz de alguém
cuja personalidade se encontra
ainda em construção e que absorve
tudo o que a rodeia, desde os
detalhes da cidade aos pormenores
dos livros que lê, da rebelião em
relação a regras ao desejo de
escapar.
A singularidade de Anna Burns —
que terá sido um factor decisivo na
atribuição do Booker de 2018 —

reside na utilização de uma técnica
narrativa semelhante à “corrente
de consciência” — há momentos
que remetem para o Ulisses de Joyce
— e na estrutura do romance que
tem as suas raízes nos antigos
“contos de fadas”, ou “contos
exemplares”, relatos em que
existem sempre uma jovem em
perigo, um “papão” (o Leiteiro/
Milkman do título que está sempre
“a fazer qualquer coisa, ou fizera
qualquer coisa ou estava a pontos
de levar a cabo qualquer coisa”),
lugares perigosos — veja-se o
imenso largo, deserto e ameaçador,
que ela tem de atravessar para ir
para casa, ou o parque onde ela
corre — violência, ódio, medo,
constrangimentos morais e
repressão sexual. Não é por acaso
que, quando encontramos a
narradora a andar e a ler, o livro
seja Ivanhoe, essa história de Walter
Scott sobre um galante e valente
cavaleiro, figura que não poderia
estar mais distante da realidade da
narradora, embora remeta para
lutas religiosas medievais. Tão
pouco é displicente o facto de a
narradora se refugiar na literatura
dos séculos XVIII e XIX, que prefere
à do século XX, demasiado “crua”,
demasiado próxima.
Mas a questão mais pertinente
do romance reside na busca da
liberdade, por parte desta jovem
de 18 anos. Com humor por vezes
macabro, ela navega nas águas
perigosas de uma sociedade
patriarcal, atrasada, paranóica,
dividida, compartimentada,
espartilhada em directrizes
absurdas, onde existem rusgas,
pessoas encostadas à parede, cães
degolados, informadores,
paramilitares, vigilantes e milícias,
ou seja, onde a vida se desenrola de
acordo com os padrões de um
estado totalitário, controlado, em
termos políticos, de género, de
partidos, de “tribos”. Neste
território inóspito, onde a razão
não subsiste e os propósitos de
cada um contêm sempre algo
ameaçador, é difícil percorrer os
caminhos da sanidade mental e
encontrar uma saída possível.

O narrador


perverso


Uma escrita singular que
impressiona pelo arrojo e
versatilidade, pelo tom
coloquial que nunca se
perde. E por um narrador
que parece contar a história
apenas para uma
personagem. José Riço
Direitinho

Lisboa, Chão Sagrado
Ana Bárbara Pedrosa
Bertrand

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Informa a contracapa do livro que
Lisboa, Chão Sagrado é o romance
de estreia de Ana Bárbara Pedrosa

(n. 1990).
Abre-se, lêem-se
umas quantas
páginas, e
adivinha-se
quase de seguida,
para além de
uma escrita
singular, o ritmo
veloz do que aí vem. E o que vem é
uma teia bem tricotada de histórias
de vidas que parecem ter sempre
por epicentro a cama (ou várias
camas). O que se narra são os
movimentos, os sentimentos e as
emoções, que para lá (nos)
conduzem: amores e desamores,
tédio, encontros e desencontros,
ocasiões, vingança, frustrações e
tentativas de descoberta (do outro
e dos próprios). Tudo isto contado
por um singular narrador que não
se abstém de coisa alguma (mesmo
de mandar recados às
personagens, mas disso falarei
adiante), até de deixar uns toques
de inesperado moralismo em que
não se vislumbram traços de
ironia, como este: “É a época do
consumo em massa e dos corpos
descartáveis, das emoções de
plástico e do sexo como
compulsão. Do sexo contra o
falhanço.”
O romance é feito de capítulos
curtos titulados pelos nomes (por
vezes dois) das cincos personagens,
e também pelo ano em que a parte
da história decorre (entre 2014 e
2018). Eduarda, Mariana, Noé,
Matias e Dulcineia são os vértices
de uma teia; nos fios que os ligam
vão sendo dados nós ao longo de
todo o seu comprimento que, de
uma maneira ou de outra, se
estendem entre os dois lados do
Atlântico: Portugal e Brasil. Lá mais
para o fim há umas pontas
esticadas até Israel e Palestina.
Toda a trama da narrativa, que é
simples, está centrada na relação
amorosa entre Eduarda e Mariana,

FACUNDO ARRIZABALAGA

O livro de Burns passa-se num território inóspito onde é difícil
percorrer os caminhos da sanidade mental e encontrar uma saída

Um narrador “perverso” que
assume a função de advertir e
achincalhar personagens
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