Folha de São Paulo - 19.10.2019

(Ron) #1

aeee


Certafeitatrabalheicomuma
pessoa, aprovada em um dos
concursos paraauniversida-
de para umcargodeníveltéc-
nico. Seu nome eraBernard
Kenj.Seu currículoerapara
mim uma preciosidade.


Formado em história,pela
USP, eragraduando em Direi-
topelaFaculdade de Direito
da USPetinha entresuasexpe-
riências profissionais funções
comoadeoficial de justiçaà
de agitadorcultural. Um perfil


perfeitotantoparamim, que
adoroessas interdisciplinari-
dades,comoparaocentrode
estudos que eucoordenava.


Olhoscor de garrafadegua-
raná, sorrisofácilcom dentes
defumante,tomdevoz degen-
te que quer paz,Bernardtinha
umacalmaeumacapacidade
ímpar decompreenderrapida-
menteoqueagentequeria de-
le semfazermuitas perguntas.
Pai de dois filhos, de quem ti-
nha orgulho, emarido de uma
“japinha” amada,comogos-
tavade sereferiràesposa,di-
retora de uma escola pública,
foiele oidealizador daforma
gráficadoprojeto“Memórias
olímpicas poratletas olímpi-
cosbrasileiros”,batizada por
nós de mandalas.

Muitasvezes, saíamos para
almoçar pelos bandejões da
USP,quando aindapodíamos
fazê-lo nacondição defuncio-
nárioedocente. Sentados ali,
costumávamos divagar pelas
coisas do mundoedauniversi-
dade.Bernardtinhaasensibi-
lidade do poetaeaobjetivida-
de de um homem da lei, por is-
so analisavaaconjunturasem-
precomarigidezdeumaro-
cha de granitoeadoçurade
um pôr do sol do outono.
Num denossos almoços no
bandejão da Química, discu-
tíamososimpactos das de-
núnciaseprisõesqueocorri-

amnaquelequedeveriasero
ano de 2011 ,talvez 2012 .Viví-
amosaindatempos de pujan-
ça,enão passavapelacabeça
do mais pessimistaoque ain-
da estavapor vir.
Falávamos daextensãode
todo aquele movimento edos
crimes que estavam sendo jul-
gados. Disparei um dos pensa-
mentosdemeupai, que dizia
quetodo crime decolarinho
brancodeveria ser inafiançá-
vel, isso porque os desdobra-
mentos desse tipo de delitole-
vavamàquebradoestadode
bem-estar social.
Criançasficavamsem esco-

la,pessoasmorriamnoshos-
pitais,apesquisadebasedei-
xavadeexistir nas universida-
desporque alguém, em algum
momento,retirouodinheiro
públicodeimpostoseobriga-
ções não pagas.
Já do lado defora dorestau-
rante, depois de acenderoené-
simo cigarrododia, ele emen-
dou: “Paramim, crime inafian-
çáveldeveria sertodas as pro-
messasnão cumpridas.Sabe
porquê? Porque quandovocê
prometealgoparaalguém,e
nãocumpre,aesperançaque
reside nesse outro, que acredi-
tounoque lhefoidito, morre
um pouco.Eninguémvivesem
esperança.Roubaraesperan-
çade alguéméumdosmaio-
rescrimesqueum ser huma-
no podecometer”.
Bernardsefoi docentro que
eucoordenava, depoisdeuma
promoção mais do que mere-
cida. Vítima de um infartoful-
minante, nãoteve tempo dever
tudooque fizeramcomosso-

nhoseaesperançadetantos
brasileiros.
Suaspalavras sobreaesperan-
ça me acompanham sempreque
mevejo diantedesituações que
parecemser maioresemaisfor-
tesdoque somos ou desejamos.
Avivência de umacena que
otornaimpotenterende ape-
nasodesamparo. Seres vivos
nessacondição,sem esperan-
ça,são levados ao adoecimen-
to,enolimite,àmorte, provan-
do queaesperançanãoéape-
nas umapalavrabonita,que
rendebonsversos.
Nãoéàtoa que, de tudo o
que escapou dovaso dadopor
ZeusaPandoratenharestado
tãosomenteaesperança. Por
menoremaisfrágilque ela
possa parecer, não houvepo-
der divino quearetirassede
pertoda humanidade.Pode-
rosa, mesmo quando nofor-
matodeumafagulha,éaela
querecorremos quando tudo
parece terfim.Édelaquebri-
lhaaluz no fim do túnel.

Éàesperança querecorremos quando tudo pareceter fim



  • KatiaRubio


ProfessoradaUSP,jornalistaepsicóloga,éautorade“Atletas Olímpicos Brasileiros”


Sobredesamparo eesperança


|dom.Juca Kfouri, Paulo Vinícius Coelho,Tostão|seg.Juca Kfouri, PauloVinícius Coelho |qua.Tostão |qui.Juca Kfouri|sex.RenataMendonça |sáb.KatiaRubio


$
Copa dosRefugiados

FormatoDisputado em
mata-mata,otorneio é
organizado pelaPrefeitura
de São Paulo em parceria
comaONGÁfricado
Coração.Aquintaedição da
competiçãocomeçou em 5
de outubroereuniu times
de 16 paísesformados por
refugiadoseimigrantes

Participantes
•Angola
•Benin
•Camarões
•Colômbia
•Congo
•Coreia do Sul
•Gâmbia
•Guiné-Bissau
•Haiti
•Líbano
•Mali
•Níger
•Nigéria
•Tanzânia
•Togo
•Venezuela

FinalCongoxNíger
Domingo(20), às
14h, no Pacaembu

Ingresso1kgde
alimentonão perecível


Essa Copa é
uma grande
oportunidade
paraquem quer
ser jogador.Eu
nãovejo como
brincadeira. É
muitosério.Quero
chancedefazer
umteste, qualquer
coisa paramostrar
quetenhotalento

Hector Chukwudi Nwabia, 23
Jogador do time de Níger


  • AlexSabino


sÃOPauLODenílson PedroDi-
zizeko, 22 ,jáouviu dafamília
pedidos paravoltar.Nascido
no Congo,se mudouainda
criançaparaAngola,ondees-
tãoaté hoje os parentes. Sua
respostaésemprenegativa.
“Quando eu saí do meu pa-
ís, falei paraomeu pai que só
voltariacomumacondição
melhor.Dojeitoque estou ho-
je, jamaisretornaria.Saí para
realizarumsonho. Enquanto
nãorealizar,não volto”,afirma
ele,que estádesempregadoe
moracomquatroamigos em
umaedícula nos fundos de
umacasa na Vila Guilhermi-
na,zona lestedeSãoPaulo.
Também não passa pelaca-
beçade Hector Chukwudi
Nwabia, 23 ,apossibilidade
deretornaràNigéria, seu pa-
ís natal. Atédesembarcarna
capital paulista, elefezrota
que passou por Níger,Sene-
gal, CaboVerdeeVenezuela.


Éesforçodemaisparade-
sistir assim. Poucoimporta
queparasobreviver depen-
da de amigos, do primo que
moracomele em Cidade Ti-
radentes,extremo lestedaci-
dade,edoirmão naTurquia.
Ofutebol oscolocaráemla-
dos distintos nestedomingo
( 20 ), às 14 h, na final da Copa
dosRefugiados, disputada no
Pacaembu.Para entrar no es-
tádio,épreciso levarumqui-
lodealimento não perecível.
Denílsonécapitão da sele-
çãodoCongo.Hector,deNí-
ger. Ambos jáforamcampe-
ões dotorneio.Omesmo es-
porteque ostorna adversári-
os carregaosonhoqueosune.
“EssaCopaéuma grande
oportunidade paraquem quer
ser jogador.Eunãovejo co-
mo brincadeira.Émuitosé-
rio.Querochancedefazer
umteste, qualquercoisa pa-
ra mostrar quetenhotalento.
Nóspodemos provar também
que há muitos imigrantesere-

fugiadosque sabemjogar bo-
la”, dizonigeriano,com por-
tuguês de sotaquecarregado.
Otorneio organizado pela
ONGÁfricadoCoraçãoerea-
lizado desde 2014 nãotemco-
mo objetivofinalaconsagra-
çãoesportiva.Foi criado para
serferramentadeunião entre
refugiadoseimigrantes de di-
ferentes países.
“Nemsempreéassim. Mui-
tasvezes setorna rivalidade
mesmo”,constataBraima Ma-
né,coordenador doeventoe
nascido na Guiné-Bissau.
Ofutebol, paraváriosjoga-
dores da Copa dosRefugiados,
representaomesmoquepa-
ra milhões degarotosdas pe-
riferias de grandes cidades:a
oportunidade de transformar
sua vida.Adiferençaéque os
participantes da final deste
domingonoPacaembu não
são mais adolescentes.
Afamília deDenílson saiu
do Congoparafugirdaguer-
ra civilnopaís.Deacordocom

as ONU,mais de 13 milhões
decongoleses necessitavam
de ajudahumanitária no ano
passado.Cerca de 7 , 7 milhões
vivem em situação de insegu-
rançaalimentar.
Aviolência naregiãofez
comqueamãe de Christian
Mbolo, 23 ,que vivenamesma
casa deDenílsoneéatacan-
te daequipe do país na Copa
dosRefugiados, mandasse o
filho paraoBrasil em 2013 ,
onde nãoconhecianinguém.
“Minha mãe morreu, meu
paitambém. Hoje em diafi-
caramapenas meus irmãos”,
afirma ele, que nãogostade
falar sobreoassunto. “Estava
acontecendo algonomeupa-
ís”, diz,repetidasvezes, quan-
do questionadosobresua his-
tória antes de sair decasa.
Christiantambémtemoso-
nho de jogar futebol profissi-
onalmente,oesporteque pra-
ticavatodos os dias quando
eracriança,no Congo.
Aocompletar 18 anos,te-

Antesdedecisão, refugiados


sonham com futuro no futebol


Atletas veem Copados Refugiadoscomo chancedevirar jogador profissional


EsportEaovivo

8h

10h

12h

14h

16h

18h

20h

8hEibarxBarcelona
Espanhol,ESPN BraSil

10h30Augsburg x
Bayern de Munique
Alemão,FoxSPortS

12h50Corinthians
xFranca
NBB,BaNd

13h30Cristal Palace
xManchesterCity
Inglês,ESPN BraSil

15h30Juventus
xBologna
Italiano,rEdEtV!EdaZN

18h30PontePreta
xBragantino
SérieB,SPortV

Oscongoleses Christian(esq.)eDenílson disputarãoafinal da Copa dosRefugiados no Pacaembu Adriano Vizoni/Folhapress


ve desairdoabrigomantido
pelaPrefeituradeSãoPaulo e
constatou que tinha de arru-
mar um emprego.Passoupor
umarededefastfoodecome-
çouaguardar dinheiro. Ho-
je em dia, trabalha emoutra
cadeia derestaurantes. Com
aseconomias,comproucar-
roparaganharumextra co-
mo motoristadeaplicativo.
“Eu amo futebol.Agente
temisso no sangue. Estou na
Copa porque, derepente, al-
guém pode mever, gostar do
jeitoque jogo, como me mo-
vimentoepode querer dar
uma oportunidade”,afirma.
Denílson estevepertode
chegar aonde queria.Atuou
pela escolinha da Portugue-
sa, masfoidispensado quan-
do estavanosub- 20 .Umem-
presárioolevou paraaMato-
nense, onde ficou por quase
um ano.Oclube de Matão(a
300 km deSãoPaulo)foi de-
nunciado peloSindicatodos
AtletasProfissionaisdoesta-
do porcausa dascondições
ruins de trabalho paraabase.
Elecontaque havia “comida
eáguaparabeber”, mas tinha
de se desdobrar paraconse-
guir material de higiene pes-
soal.Voltou para acapitalpa-
ra passar asfestas de final de
anocomamigos e, na horade
retornaràMatonense,voltou
aencararogrande problema
de quemtentaser jogador de
futebol profissional no Brasil.
“O agentedisse que euteria
de pagar parajogar na Mato-
nense. Eu não tinhacondi-
ções. Mesmo quetivesse, es-
tounaidade dereceber para
jogar,não pagar”, diz.
Hector nuncateveobteve
achancedefazertestes para
algumaequipe. Disputou par-
tidas nasvárzeas da CopaPi-
oneer,umdos torneios ama-
dores mais importantesdoes-
tado,eoutros amistosos pe-
lo PaunoGato, equipe dazo-
na leste. Quandoatua pelo ti-
me,recebe“alguns trocados”.
“Seconseguir um empre-
go,vouagradeceraDeus. Mas
querojogar futebol.Éoque
desejo paraaminhavida.Te-
nhocerteza quevaidar certo.
Por isso que euvejo aCopa dos
Refugiadoscomo algoimpor-
tante. Sevocê der umaentre-
vistanaTV, podemudar sua
vida”, afirmaonigerianoque
nasceu naregiãoseparatista
deBiafra,nosudestedopaís.
Voltaemeia, elefala com
amãe portelefone para que
possa ouvir suavoz.Ela cho-
ratodasasvezes,pedepara
ofilhovoltarefazumaper-
guntaqueHector nãoconse-
gueresponder:“quandovou
vê-lo novamente?”
Mesmoquequisesse,ovo-
lante, zagueiro, meia,atacante
(“jogoonde precisar”) da sele-
çãodeNíger não poderia via-
jar.Não estácomadocumen-
taçãoregularizada no país.
“Estar no Brasil jáérealizar
um sonho”,afirma.Ooutroéo
mesmo deDenílsoneChrsiti-
an. Ganharavida no futebol.

esporte


SáBAdO,19dEOUtUBROdE2 019 B9
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