A última criada de Salazar

(Carla ScalaEjcveS) #1

A noite fora longa. Carregada de indefinições, discussões e polémicas.
Enquanto Portugal dormia, os médicos desentendiam-se quanto ao
diagnóstico e à cirurgia. Entre governantes, amigos e secretários entretanto ali
chegados analisaram-se as opções sem prescindir do olhar político. O caso não
era para menos: uma operação tal «não podia fazer-se sem o acordo do
Governo».
As irmãs de Salazar estão longe, velhas, frágeis, e fora consensual que não
deviam ser despertadas a meio da noite para tomar uma decisão de tal calibre.
Habituado a tudo decidir, o chefe do Governo deixara de ser dono do seu
destino. «Neste momento exato, o poder abandona Salazar», escreverá Franco
Nogueira. Mas o feitio não muda. «Quer que chame um confessor?»,
perguntara-lhe Vasconcelos Marques. «Isto é um hospital ou uma igreja?»,
respondera o ditador, seco.
Cerejeira e Maria rezam por ele, no quarto ao lado.
Salazar vai respondendo a estímulos de conversa. «Parece que não estou
muito bom, julgo que me querem fazer uns orifícios na cabeça», desabafa. Sabe
depois que terá de rapar o cabelo. «Se é preciso fazer, faça-se», aceita, de voz
tranquila.
Sugere-se ainda que sejam facultados uns 30 minutos a Salazar para que
possa ditar uma espécie de testamento político. O estado do doente não o
aconselha: a lucidez é duvidosa, a situação cerebral agrava-se e, a fazer-se tal
documento, a sua validade estará, no mínimo, em causa. Há mesmo quem
sugira que escrever ou ditar algo do género resultaria numa fraude.
Pelas quatro da madrugada, vivem-se horas dramáticas.
Estão de plantão a polícia política, estruturas militares, a censura. A ordem
estabelecida treme.


Às primeiras horas da manhã, Salazar está de cabeça ligada, olhos cerrados,
mas lúcido e consciente quando pede para ver a embaixatriz Vera Franco
Nogueira. Vencera a primeira batalha. O subsecretário Paulo Rodrigues faz
também uma curta visita por essa altura e, fiel à sua «fria objetividade»,
Salazar deixa cair uma pergunta tão dramática quanto irónica, face às
circunstâncias: «Olhe lá, nós não estamos presos, pois não?»
Em São Bento, azáfama.
As empregadas organizam-se para levar à Casa de Saúde da Cruz Vermelha
refeições, roupas, utensílios de higiene e o que mais faça falta ao «senhor

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