A última criada de Salazar

(Carla ScalaEjcveS) #1

ainda hoje é receada e que vela há quase meio século pelo Senhor Doutor. Os
seus cabelos castanhos, puxados para trás, dominam um rosto de grande
mobilidade que, quando ela fala, se quebra, todo ele em rugas furtivas»,
descreve o jornalista, rematando o perfil: «Criada balzaquiana que se tornou,
devido à sua devoção, ao seu bom senso de camponesa, à sua incondicional
dedicação ao patrão, a governanta do chefe do Governo, dotada de poderes
indefinidos, isto é, de uma influência não definida, mas incontestada.»
Maria recebe-o, amável e simpática. «Já a tinha visto várias vezes e falava
bem francês», recordará, mais tarde, o repórter.
A governanta aproveita os breves minutos iniciais para traçar o quadro geral
da situação: Salazar não consegue caminhar sozinho, nem com ajuda de uma
bengala. Por determinação médica, está impedido de ler jornais, ver televisão e
ouvir rádio. Dentro de certos limites, vai sendo informado de tudo através das
visitas dos amigos. Maria volta então a lembrar o compromisso: o jornalista
tem de colaborar na encenação «e não lhe revelar que já não é dono de
Portugal».
Roland levava na memória uma imagem de Salazar longínqua, retrato de um
homem de olhar vivo e sorriso sedutor, «uma bela figura de velho». Agora
encontra-o na pérgula, ao fundo do parque, junto a uma buganvília, sentado
numa cadeira de baloiço, sob um toldo, e aconchegado por almofadas. Do
homem que conhecera sobra uma amostra macilenta, paralisado do lado
esquerdo, vestindo um casaco branco, uma gravata preta e as botas do costume.
Está um belo fim de tarde.
O antigo chefe do Governo reconhece o jornalista à primeira, estende-lhe a
mão, pede que se sente. Salazar deseja saber novas de França, mas parece estar
a par de tudo: sabia que o general Charles de Gaulle abandonara o poder e que
fora substituído, na Presidência da República, por Georges Pompidou. Aborda-
se um pouco a política caseira, pela rama, e entra-se a fundo nos temas
internacionais, sobretudo centrados na África portuguesa. Salazar desenvolve
as teses habituais, sem descolorir os propósitos: resistir, resistir sempre. Às
Nações Unidas, às pressões dos EUA, ao perigo soviético no Mediterrâneo, no
Atlântico Sul... e na lua. «Quem sabe», questiona, se «os russos» não tentarão
utilizá-la «como base de agressão?»
Roland Faure escuta, atento, as reflexões do ditador. «Num francês
impecável». Mas está ali com um propósito, uma estratégia arriscada e
delicada: conseguir da boca do interlocutor a resposta à pergunta que todos
fazem: saberá ele que já não é Presidente do Conselho?

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