A última criada de Salazar

(Carla ScalaEjcveS) #1

preocupações que são o martírio da responsabilidade e não o raro o tributo de
sangue da Glória; depois de uma longa jornada de holocausto e dádiva, entre as
manhãs cheias de programas e noites esgotantes de vigília – morreu o
homem!», dissera. «Tarde de mais para ele e para nós, que o combatíamos»,
regista Miguel Torga.
À hora da sua morte, o ditador deixara uma única conta bancária, na Caixa
Geral de Depósitos. A 31 de dezembro de 1969, sete meses antes do fim,
apresentara um saldo positivo de quase 275 contos, que entretanto não deveria
ultrapassar os 50 mil escudos, fruto do levantamento de cheques que Salazar
ainda conseguira assinar nos primeiros tempos de 1970. Há ainda as
propriedades em Santa Comba e no Vimieiro, terrenos e casa que naquele ano
deveriam valer à volta de 100 contos, e que o falecido deixa às irmãs.
Salazar parte como sempre viveu: sem conceder ambições para quem dele
dependia e continuando fiel à ideia de que a posse de bens materiais não traria
a felicidade. Quando abandonasse o poder, prometera, poderiam até sacudir-lhe
as algibeiras que nem poeira se encontraria.
Fora um provinciano até ao fim, maniqueísta.
Para ele, não era nos campos, no mundo rural, que a miséria se tornara
«aflitiva, dramática». O mal estava nas cidades, que esculpira os homens no
individualismo, no isolamento, nas lutas diárias com outros homens, levando-
os a ser «sem reparar, a encarnação do próprio egoísmo».
Agora que tudo se resumiria a pó, cinza e nada, António de Oliveira Salazar
deixara, aos 81 anos, um País fiel à sua figura e doutrina. Considerava «mais
urgente a constituição de vastas elites do que ensinar toda a gente a ler» e
glorificava o povo domesticado, ordeiro e mesquinho, atado de sonhos e
liberdades, onde a pobreza, o atraso e o remedeio foram vendidos pela
propaganda do regime como traços de nobreza. «Nós somos um País pobre
que, tanto quanto se enxerga no futuro, não pode na metrópole aspirar a mais
do que à dignidade de uma vida modesta», sustentara ele, untando de fatalidade
o destino coletivo. «A doçura de um viver tranquilo», era o seu mais ardente
desejo para «o nosso canto de terra». A obediência das gentes, «mais receosa
do que cívica», punha-o de sobreaviso, por recear que a «docilidade»
representasse «um grave perigo para estabilidade política e social». Fernando
Pessoa batizara-o de «tiraninho», imagem com que ilustrara a sua dimensão
«campestremente sórdida», produto «duma fusão de estreitezas». No seu
trágico e cómico fim, Salazar não satisfizera acólitos nem adversários: uns
sonhavam vê-lo morrer em glória, outros viram-se obrigados a contentar-se

Free download pdf