A última criada de Salazar

(Carla ScalaEjcveS) #1

apenas para medir a reação da audiência.
Sobre o voo, pouco a dizer. Sensação especial, «nenhuma». Salazar fizera
questão de viajar como passageiro normal. O aparelho dera grandes abanões
durante o curto percurso, com trovoada à mistura, mas enjoos, também «nada».
Muito menos dores de cabeça ou de ouvidos. «Afinal é aquilo que toda vida
fiz: não fumar e apertar o cinto», dirá Salazar, humorado, a uma amiga.
Em junho, o chefe do Governo aparecerá às visitas de casa, oficiais ou de
cortesia, de perna estendida. O médico e as radiografias atestam que partiu dois
dedos, mas não será preciso gesso.
Não está para biografias, reage a Franco Nogueira quando este comenta que
se encontrara com um jornalista britânico que deseja fazer um livro com esse
propósito. «Biografias só interessam a pessoas que tenham um futuro político,
não é o meu caso. Estou no fim, mais dia, menos dia. E quando se está para
morrer ou desaparecer politicamente não interessam biografias», reage
sombrio.
Nos últimos anos de vida, estas reações serão cada vez mais frequentes. Mas
nem sempre pairava sobre ele um céu carregado.
Salazar apreciava a graça, a ironia e o sentido de humor. Tinha essas
características em doses fartas, embora não hesitasse em recorrer, quando
necessário, ao «sarcasmo sangrento», conforme notara o referido ministro, em
diversas conversas.
Em agosto de 1966, essa faceta revelar-se-á, de forma refinada, a pretexto da
inauguração da nova ponte sobre o Tejo. Antes disso, tentara a todo o custo, e
por escrito, evitar que a nova travessia se chamasse «Salazar». Justificara a sua
contrariedade por considerar que o nome de um político só deveria ser dado a
monumentos e obras públicas «cem ou duzentos anos após a sua morte». Mas
ficara vencido.
Acabará mesmo assim por interferir em toda a programação da cerimónia,
mergulhando, como tanto gostava, «na minúcia dos assuntos». Em carta ao
ministro Arantes e Oliveira sugerira, por exemplo, mudanças na ordem dos
discursos da inauguração e a coordenação do regresso do Chefe de Estado
Américo Tomás à tribuna. Advertira que a soltura dos pombos e dos foguetes
não deveria misturar-se com o hino nacional, considerando ainda que os
desfiles de carros e manifestações lhe parecem «complicações inúteis».
Discreto, escrevera ao presidente da Câmara solicitando que fossem retiradas
as duas manchas de barracas nos acessos do lado de Lisboa, presume-se que
por razões humanitárias, embora também deslustrassem o quadro.

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