A última criada de Salazar

(Carla ScalaEjcveS) #1

continuou a confessar as outras. Com padres, a dona Maria não se metia.»
Na intimidade do palacete e fora dele, Salazar e Maria incensavam a virtude.
A ditadura estava abençoada desde os tempos de Coimbra, quando aquele que
seria o futuro cardeal Cerejeira e o amigo António, professor de Finanças,
partilhavam o quarto e as limpezas com Maria, então a doméstica devota que
enfeitava aquele quadro para contemplação da divina providência.
Aos domingos, em São Bento, as raparigas eram obrigadas a comungar nas
missas caseiras celebradas por Cerejeira ou outro sacerdote que ele mandasse
ao palacete. «O senhor doutor ajudava, fazia de sacristão, era ele que tratava do
vinho e da água, mas nunca o vi comungar. Mas gostava muito que a gente
comungasse.»
À noite, rezava-se o terço na capela «num oratório grande», paredes meias
com o quarto do Presidente do Conselho. Salazar apenas se juntará a
governanta, à criadagem e às enfermeiras nas orações no final da vida, «quando
se viu nas últimas».
O ditador mantinha uma relação íntima com a fé e as devoções, esquivando-
se a espalhafatos religiosos ou exibicionismos de crente. Numa manhã de
domingo, no início da década de 1960, Adriano Moreira quase o surpreendeu
nessa sua intimidade com o divino.
O então ministro do Ultramar chegara ao Forte de Santo António do Estoril a
pé, facto que, por si só, evitava que, de dentro, tocassem a sineta que obrigava
a abrir os portões do caminho de acesso aos automóveis. Adriano Moreira
subiu uma breve escada e, sem se anunciar, dirigiu-se ao pátio interior onde se
encontrava a capela de portas abertas. Deparou-se então com um cenário que
até ali não lhe fora dado ver: «De frente para o altar, Salazar cuidava da toalha,
das flores e das velas.» Como qualquer beato.
Pensando não ter o direito de violar este momento sagrado, o ministro
regressou, vagaroso, pelo mesmo caminho. Quando simulou nova entrada no
forte, agora devidamente anunciado pelo tocar da sineta, encontrou o chefe do
Governo já sentado na cadeira e «mergulhado nos negócios de Estado».
No forte, Salazar tinha um quarto ascético. «Muito pequeno, frio, todo em
pedra», recorda Rosália. Era uma espécie de «cela conventual com as paredes
caiadas e nuas», com «uma mesinha de ferro», poucas cadeiras, «um mobiliário
de campista, um telefone – e é tudo», observara Ploncard d’Assac, jornalista
francês que o visitara.
«Os nossos quartos eram em baixo, até ouvíamos o mar a bater no paredão.
Na cozinha, as ondas batiam na janela», conta Rosália.

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