A última criada de Salazar

(Carla ScalaEjcveS) #1

são também alguns dos poemas que o ditador mandara imprimir no livro da 3.a
classe.
Por conta dos caprichos de outros tempos com Salazar, ela assume ânsias de
zeladora da purificação do regime, alimentadas por ele, e denuncia, numa
vertigem de patológica bufaria, polícias, adversários políticos, professores.
Viria depois Júlia Perestrelo, coisa séria, com quem terá pensado casar. Ele já
professor em Coimbra e doutor em Direito, ela filha prendada, de aristocrata
família rural. Filha de Maria Perestrelo, a madrinha de Salazar que, por acaso,
até faltara ao batismo do afilhado, tendo na altura passado procuração.
O jovem António dará explicações à rapariga e desafiara-a até a escrever
uma composição subordinada ao tema: «O que pensa do amor?» A madrinha
não gosta, considera o exercício escabroso e impertinente, e, na primeira
oportunidade, fará sentir a Salazar o peso da plebe nas suas origens, ele que era
filho do Ti António, modesto feitor da casa dos Perestrelos.
Para bom entendedor, meia palavra basta: Júlia é de outra condição,
inalcançável para ele. «Parece que a pretensão foi tomada por impertinente
ousadia e o orgulho do jovem bacharel pobre ressentiu-se da recusa, como era
natural», recordará mais tarde, no exílio, Marcello Caetano. O amigo e
confidente Cerejeira notara a impossibilidade deste amor com Júlia, além da
incompatibilidade de «feitios, gostos e temperamentos» e dará a sua bênção ao
desenlace.
Salazar, magoado, promete e cumpre: corta todos os laços com a madrinha.
Anos mais tarde, ante a reaproximação de Júlia, manter-se-á gélido, distante,
impenetrável.
A caminho dos 30 anos, mesmo enfrentando crises sentimentais, o mestre de
Direito reunira já um lote considerável de admiradoras, sendo frequentemente
mimado e conquistado pelas artes da sedução feminina. Pianista amadora, mas
de mérito sobredimensionado entre os fiéis, Glória Castanheira vai aproximar-
se de Salazar à boleia das afinidades musicais. A rapariga ajudá-lo-á dando
concertos em festas de caridade que ele ajuda a promover, ao mesmo tempo
que prepara doces para o apaixonado enviar às irmãs.
Dura pouco o devaneio. Ou derriço, palavra preferida do biógrafo Franco
Nogueira para ilustrar as quedas amorosas do ditador. Ainda assim, esse é um
momento único para descobrir em Salazar o divertimento e a lisonja que lhe
trazem os rumores sobre os seus alegados romances e casórios. «Sabe V. Ex.a
que, de vez em quando, quando menos conto com isso, eu estou para casar, ou
melhor, anunciam-me que estou para casar», escreverá ele a Glória

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