A última criada de Salazar

(Carla ScalaEjcveS) #1

aprecia, as morcelas assadas que ele devora, as trutas do Dão grelhadas com
grelos, o bacalhau assado com batatas a murro ou em camadas de grelos e broa
esfarelada, a canja de ossos de peru moídos, as barbatanas de bacalhau – que
lhe enviavam já aparadas – o arroz de lampreia, o caldo de cebola com batata, o
caldo verde – que também apreciava com broa migada – e a marmelada que é,
a par do pudim francês, um dos poucos doces capazes de endoidecer o ditador.
Mesmo sabendo que Salazar é dado a refeições frugais, simples e caseiras,
Maria, dedicadíssima, pressente apetites, adivinha gostos, tenta educar-lhe o
paladar, elevando-o a patamares mais sofisticados.
Mais importante ainda: leva-lhe à boca memórias de cozinhados maternos,
redescobertas que o palato não esquece, entre os quais se contava um arroz de
coelho do monte, pitéu ligado à tradição das caçadas na zona de Santa Comba.
A governanta colecionara uma quantidade de livros de cozinha que, com a
prática, a tornara doutorada nas fervuras e vapores culinários. Nem por isso
deixa de estar ao corrente das novidades.
Quando o mestre cozinheiro João Ribeiro, do Aviz Hotel, se desloca a São
Bento para confecionar ementas especiais para os raros banquetes de Estado,
Maria segue-o de perto, fuçando segredos.
O chef, também ele beirão, ensaia pratos de perdiz com foie-gras e vinho do
Porto e habitua-se também a contornar a forretice de Salazar. É dele a «galinha
à convento de Alcântara», receita de baixo custo, improvisada para o banquete
oficial oferecido à rainha Isabel II.
Pelo telefone, a governanta absorve receituário vasto.
Amigas das boas casas de família de Lisboa, senhoras da burguesia, dão-lhe
sugestões, trocam conselhos gastronómicos, indicam segredos para melhorar a
confeção das ementas mais variadas.
Por vezes, é o próprio Salazar quem anota os condimentos e a preparação de
determinada receita. Fá-lo nos intervalos de escritas ou leituras. Enquanto
Maria dita, mantendo o auscultador colado à orelha, o ditador escreve. Na
infinita pachorra que dispõe para os hábitos da governanta nele também cabia a
capacidade de se impressionar com as «receitas extraordinárias» com que ela o
tenta cativar.
«Às vezes, sou vítima das suas experiências», dirá o homem que mais
depressa se contentava com umas sardinhas assadas e um bacalhau com
batatas.«Ele não ligava nada aos efeitos especiais na cozinha», ri-se Rosália.
«Mas ela era muito boa cozinheira e nunca deixou de cozinhar. Mesmo quando
não tratava ela do almoço ou do jantar, ia sempre meter o dedo na comida que

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