A última criada de Salazar

(Carla ScalaEjcveS) #1

era destinada ao senhor doutor, que ia da cozinha para a copa, no primeiro
andar, através do pequeno monta-cargas. A dona Maria fez os petiscos que ele
mais gostava quase até aos últimos dias. Chicharro assado, por exemplo, que
hoje ninguém o quer, e ele comia-o. Não era esquisito», lembra a padeira de
Favaios.
A governanta passa o tempo a aprimorar técnicas, a refinar saberes, a
inventar sabores. Ficaram famosos a sua torta de bacalhau desfiado e o
esparregado. Deixara a sua marca em faisões – que depenava com as próprias
mãos – lombos e pescados, caldos e molhos, dos quais, diga-se, Salazar não era
grande apreciador.
Maria detestava que ele regressasse, por vezes, ao miserabilismo da sardinha
frita com salada de feijão-frade, pois trazia à sua memória de tricana tempos de
remedeio da casa paterna, onde uma sardinha era para dois. Pelo País, ganhara
entretanto fama, sem proveito, o «Bacalhau à Salazar», com batatas no lugar do
fiel amigo, historieta com a qual se ridicularizava a avareza do ditador e o
miserabilismo da nação.
Mas a São Bento chegava de tudo. De todo o lado.
Do Vimeiro, a irmã Marta enviava por comboio, no mínimo duas vezes por
mês e consoante as melhores épocas dos produtos, remessas de iguarias com os
sabores da província, que o senhor Furtado, motorista, ia buscar à estação de
Santa Apolónia.
Eram cestos de hortaliças, azeitonas, broa, vinho, azeite, pimentos pequenos,
figos, cerejas e abóbora, tudo bem acomodado e embrulhado em papel de
jornal.
Alzira Rosa, empregada da família no Vimieiro, fazia o pão, «passadinho,
com uma peneirinha de seda» e ajudava a tratar da encomenda para «o senhor
doutor», que, por vezes, incluía também «um peru, uma galinha ou duas,
presunto, chouriça e agriões, que ele gostava muito de uma sopinha de
agriões.»
Em outubro, «no tempo das amarelas, nome que a gente dava aos míscaros,
lá vinha também um cesto deles. Dava uma trabalheira limpá-los!», lembra
Rosália.
O velho amigo Bissaya Barreto produzia, nas suas propriedades, vinhos de
meter respeito, mas, não sendo apreciador, levava garrafas para Lisboa, sempre
que aos sábados aparecia para jantar com o ditador. «O vinho da minha quinta é
tão bom como o dele, apenas um pouco mais forte...», dissera, a propósito,
Salazar.

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