Preâmbulo
Na estação ferroviária de Santa Comba Dão, o relógio prepara-se para acertar
agulhas com as cinco da tarde. Pelo altifalante, uma voz agita a atmosfera
abafada e rumorejante da plataforma: «O comboio especial, proveniente de
Lisboa, em que são transportados os restos mortais do professor doutor
Oliveira Salazar, chegará à primeira linha da primeira gare desta estação às
dezassete horas e seis minutos.»
A expedição fúnebre deixara a Praça do Império, na capital, há quatro horas e
42 estações. A última homenagem realizara-se no Mosteiro dos Jerónimos, com
o corpo em câmara ardente, e o luto durava há três dias.
O percurso fez-se depois ronceiro, sobretudo nos apeadeiros citadinos, onde
o povo, curioso, pasmado e choroso, se aglomerou à passagem da Diesel 1800 ,
a locomotiva que transportava o princípio do fim do regime.
Nos campos, nas colinas próximas da via-férrea, mulheres ajoelharam-se e
homens tiraram os chapéus, em respeito, olhados de perto por crianças
espantadas.
As carruagens passaram lentas, lotadas de flores, de individualidades de
Estado, de familiares e amigos íntimos de Salazar, de jornalistas e de agentes
da polícia política. Eram mais de 300 personalidades. A urna viajara ladeada
por um pequeno altar, quatro tochas acesas e três cadeirões.
Após breve paragem de oito minutos em Coimbra, o comboio, lânguido,
entrara finalmente no bucolismo da Beira Alta, até Santa Comba se oferecer à
vista.
Na estação, debaixo de um calor sufocante a ameaçar trovoada, aglomeram-
se agora jovens da Mocidade Portuguesa, beatas inconsoláveis, homens
cabisbaixos de fatos escuros e militares nas suas fardas impecáveis.
As atenções concentram-se em Marta e Laura, duas senhoras de cabelos
brancos, irmãs do ditador.
Leopoldina, a terceira, não veio.
Doente, assomará lacrimosa à vidraça dali a pouco, quando o féretro se
detiver por minutos, quase sem sussurros, diante da casa onde nasceu Salazar.