ANJO CAÍDO

(Carla ScalaEjcveS) #1

quatro a quatro, sem deixar espaço para Gabriel. Em vez de provocar um incidente religioso,
ele saiu da rua e deixou a família passar, uma gentileza que não provocou nenhum olhar ou
gesto de gratidão. As mulheres veladas e o patriarca subiram a colina em direção aos muros
da Cidade Antiga. Os garotos ficaram para trás, na mesquita improvisada na Estrada de
Jericó.
Agora as preces da Al-Aqsa já ecoavam através do vale, misturando-se com o badalar
dos sinos de igreja no monte das Oliveiras. Enquanto duas das três religiões abraâmicas da
cidade se engajavam numa disputa de profunda beleza, Gabriel olhou para as intermináveis
lápides do cemitério judeu e se perguntou se teria forças para visitar o túmulo de seu filho,
Daniel. Vinte anos antes, em Veneza, numa noite de janeiro em que nevava, Gabriel tinha
arrancado o corpo sem vida do garoto de dentro do inferno de um carro bombardeado. Sua
primeira esposa, Leah, sobrevivera milagrosamente ao ataque, apesar de ter sofrido
queimaduras catastróficas no corpo todo. Agora ela vivia num hospital psiquiátrico no topo do
monte Herzl, presa na própria mente. Afligida por uma combinação de transtorno de estresse
pós-traumático com depressão psicótica, ela revivia o atentado a todo momento. De vez em
quando, havia lampejos de lucidez. Durante um desses períodos, no jardim do hospital, ela
concedera a Gabriel permissão para se casar com Chiara. Olhe para mim, Gabriel. Não resta
nada de mim. Nada além de uma memória. Essa era apenas uma das visões que perseguiam
Gabriel sempre que ele caminhava pelas ruas de Jerusalém. Ali, na cidade que amava, ele não
conseguia encontrar paz. Gabriel só via o conflito interminável entre árabes e judeus em cada
gesto e palavra e o escutava na chamada para a prece de todo muezim. Nos rostos das
crianças, ele via fantasmas dos homens que tinha matado. E, vindo dos túmulos do monte das
Oliveiras, ele escutava os últimos choros de uma criança sacrificada por causa dos pecados
do pai.
Foi a lembrança de Daniel morrendo em seus braços que compeliu Gabriel a entrar no
cemitério. Ele ficou diante da lápide por quase uma hora, pensando sobre o tipo de homem
que seu filho poderia ter sido, se ele teria sido um artista, como seus ancestrais, ou se teria
encontrado algo mais prático para fazer. Por fim, quando os sinos da igreja anunciaram que
era uma da tarde, ele colocou pedras sobre a lápide e percorreu o vale do Cédron até o posto
de segurança, onde crianças vindas do Neguev abriam suas mochilas coloridas para a
inspeção. Gabriel se juntou a elas por um instante. Depois de sussurrar algumas palavras no
ouvido de um policial, ele contornou os magnetômetros e entrou no Bairro Judeu.
Bem na sua frente, do outro lado de uma praça larga, estava o Muro das Lamentações, o
resquício muito disputado da barreira que, no passado, cercara o grande Templo de Jerusalém.
No ano 70 d.C., após um cerco cruel que durou vários meses, o imperador romano Tito
ordenou a destruição do templo e a morte dos judeus rebeldes da Palestina romana. Centenas
de milhares pereceram no derramamento de sangue que se seguiu e o conteúdo do Santo dos
Santos, incluindo a grande menorá de ouro, foi carregado de volta para Roma num dos saques
mais infames da história. Seis séculos depois, quando os árabes conquistaram Jerusalém, as
ruínas do templo não eram mais visíveis e a Montanha Sagrada, considerada pelos judeus
como a morada de Deus na Terra, era pouco mais que um depósito de lixo. Os árabes
ergueram o Domo da Rocha e a grande Mesquita de Al-Aqsa, estabelecendo dessa forma o

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