definitivamente, um modelo de responsabilidade. Em contrapartida, o pai era
uma nulidade em questões de afectos, não sabia como exprimi-los, e, na sua
maneira desajeitada de falar, bastante brusca, só conseguia revoltar cada vez
mais a filha. A relação deles degradara-se ao ponto de se tornar um vulcão em
vias de erupção.
Hoje em dia, Regina já tinha o seu espaço e a serenidade suficiente para
analisar objectivamente estes factos do seu passado. Mas também tinha a sua
dignidade e uma necessidade de afirmação imperiosa que lhe causava um
constrangimento psicológico, uma imposição a si própria de provar ao pai que
afinal ele estava errado, que ela não se perdera, que não era nenhuma
extraviada, como ele sempre temera que acontecesse. Pela sua parte, naquilo
que se referia ao pai, estava tudo perdoado, mas não esquecido. Ela conhecia-
o perfeitamente e não tencionava dar-lhe motivos para incorrer de novo nos
mesmos erros. Estamos bem, mas cada um no seu lugar, era assim que queria
deixar as coisas entre eles.
Tinha esta questão bem arrumada na cabeça, mas como é que ela se
encaixava na sua situação actual? Cada dia que passava, Regina sentia a sua
vida afundar-se mais um bocadinho. Até ao ano anterior pensara que havia
um futuro em Angola, que podia dormir descansada, hoje sabia que o mundo
mudava do dia para a noite e não havia garantias de nada. Um negócio
razoável, a estabilidade financeira, as contas da casa pagas a horas, o filho no
colégio, uma rotina sem sobressaltos e dinheiro suficiente para jantar fora ou
encher o depósito do barco de recreio, eram realidades tão banais que Regina
nem se preocupava com elas. Contudo, estava a descobrir que podia ir tudo
pelo cano abaixo com uma facilidade assustadora.
Ao chegar a casa, Regina deixou André a brincar no seu quarto e foi sentar-
se na sala a fumar um cigarro, a processar os acontecimentos das últimas
horas. Chegara o momento de repensar a sua vida, de tomar decisões. Não
podia adiar mais, achara que sim, mas não podia. Ali sozinha, no sofá, Regina
começou finalmente a tomar consciência da verdadeira dimensão da tragédia
que atingia Luanda. Ela sabia, mas uma coisa era saber e outra era presenciar,
porque, depois de acontecer connosco aquilo que toda a gente contava,
deixávamos de conseguir varrer a preocupação para debaixo do tapete. Na
noite anterior, passara por Regina uma camioneta cheia de cadáveres
empilhados e de manhã quase morrera numa manifestação que degenerara em
motim armado. Tinha testemunhado a violência, tinha visto com os seus olhos