O Último Ano em Luanda

(Carla ScalaEjcveS) #1

Para Angola e para os portugueses que aí viviam o regresso à normalidade
em Portugal chegou tarde demais, porque só aconteceu depois da
independência se concretizar sem um pingo de honra, no turbilhão de uma
guerra civil que começara sem esperar que os derradeiros representantes da
potência colonizadora arriassem a última bandeira nacional em solo africano.


Na loucura dos excessos que apanharam de surpresa um Portugal triste e
cinzento, a novidade da liberdade foi, numa primeira fase, confundida com
anarquia e quase não deixou espaço para outras preocupações. A sociedade
ficou virada do avesso de um momento para o outro. Toda e qualquer
autoridade que viesse do passado recente foi trucidada pelo vendaval
libertário que se abateu sobre o país. As forças policiais eram menoscabadas
pelo cidadão anónimo; os professores eram reprovados pelos alunos, que os
afrontavam nas salas de aulas; os patrões, proscritos nas próprias empresas,
viam-se a braços com insubordinações diárias e greves declaradas por
empregados que reclamavam privilégios insensatos a troco de nada. O caos
alastrava com o beneplácito dos sucessivos governos provisórios, frágeis e
incompetentes, e minava todos os sectores. Eram tempos loucos em que as
empresas, as fábricas, as explorações agrícolas, entravam em colapso, uma
após outra, mas a ingénua fantasia da liberdade sem regras revelava-se
subitamente uma lição de irresponsabilidade quando os trabalhadores
acordavam um dia no desemprego e percebiam que a festa acabara. Até lá,
todos pareciam caminhar alegremente para o abismo.


Assim, enquanto os militares, os políticos, os partidos, os partidários de
tudo e mais alguma coisa, os portugueses em geral, estavam demasiado
ocupados a procurar o seu próprio caminho, Angola tornou-se pasto de uma
violência descontrolada. Ameaçados por esta vertigem armada, os civis
brancos tinham acabado por compreender que não havia nada mais para eles
naquela terra amaldiçoada pelos homens e já só pensavam em fugir. Desses
dias terríveis, as pessoas que ficaram para o fim do drama português em
África recordar-se-iam para sempre de um facto singular em Luanda: por todo
o lado onde se fosse na cidade do asfalto ouvia-se a mesma sinfonia de
martelo e madeira. O recheio da cidade estava a ser encaixotado. Os
portugueses esvaziavam as suas casas, colocavam todos os bens dentro de
caixotes, fechavam-nos com pregos e faziam-nos seguir para o porto. Aí
crescia uma autêntica cidade de madeira à espera que os cargueiros com
destino a Portugal dessem vazão a tanta carga. De modo que esse martelar
constante de pregos nos caixotes assumia um significado particularmente
sinistro para quem o escutava. Os portugueses sabiam que não havia tempo a

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