Um Homem Escandaloso

(Carla ScalaEjcveS) #1

janela em feixes quentes, bem visíveis através das partículas de pó que pairavam no ar estagnado do
quarto fechado. Momentaneamente distraído, levantou-se e foi escancarar a janela. Eram nove e um
quarto e o dia já prometia temperaturas escaldantes. O Verão viera tardio naquele ano, mas com um
ímpeto brutal. João Pedro deixou-se ficar um momento a contemplar a risca prateada do rio que
faiscava por cima dos telhados da frente. Sentou-se no parapeito baixo, observando cheio de
beatitude o dia brilhante.


Pensou que devia estar triste, mas não era assim que se sentia. No passado, convencera-se de que
tivera muita sorte em conquistar Clara e que, se um dia a perdesse, dificilmente arranjaria outra
como ela. Na realidade, o que ele sempre pensara é que não arranjaria mais nenhuma mulher, de
todo. Ainda se lembrava de como andara nas nuvens no dia do seu casamento, e, mais ainda, durante
a lua-de-mel em Paris. Nessa época, ficava noites inteiras, apaixonado, a ver Clara a dormir ao seu
lado, com uma excitação a saltar-lhe do peito, dando graças a Deus por aquele milagre. Tinha tão
pouca fé em si mesmo que receou durante muito tempo que Clara descobrisse que ele era uma fraude
e o deixasse. Mas depois tiveram os gémeos, a vida foi correndo sem sobressaltos e Clara parecia
feliz, de modo que João Pedro foi ganhando confiança e, bem, deixou de se preocupar.
Agora, que finalmente se concretizara o seu maior receio, tivera um primeiro impacto de
desorientação, um segundo momento de pânico e, nessa manhã, uma estranha e inesperada
tranquilidade descera sobre ele e já não achava que houvesse motivos para desesperar.
Amava Clara, mas era preciso reconhecer que se tinham afastado um do outro. Clara mudara
bastante desde os dias da faculdade, ela chamaria a isso evoluir, ele diria que era uma espécie de
regresso às origens, que os anos de rebeldia tinham acabado e estava cada vez mais parecida com a
mãe. Não havia nada de errado em Clara reflectir a educação que recebera, era até quase inevitável.
Para todos os efeitos, ela seria sempre um produto da sua infância. Tudo o que aprendera em menina
— os princípios, uma determinada maneira de encarar o mundo — estava lá, só demorara a sair. O
único problema é que João Pedro não a acompanhava nisso. Em suma: o que ela consideraria
evolução natural, para ele era um lugar desconhecido.


A passagem fortuita pela conferência do grande mestre Theophilus Engelbrecht fora o primeiro e
surpreendente acaso que levou João Pedro a questionar-se e a reconsiderar verdadeiramente o
desastre em que se tornara a sua vida. Hoje, haveria de ser confrontado com um segundo
acontecimento inopinado. Este, não tanto do plano das ideias mas mais mundano, seria, porém, de tal
forma decisivo que desencadearia uma autêntica revolução no quotidiano pacato e desinteressante de
João Pedro.

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