Um Homem Escandaloso

(Carla ScalaEjcveS) #1

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O prédio para onde João Pedro e Clara foram morar após casarem era composto somente de dois
apartamentos em duplex. Em baixo, havia uma sala enorme com lareira, a sala de jantar e a cozinha.
Em cima, o quarto deles — uma espaçosa suíte —, o dos miúdos e o quartinho das tintas onde João
Pedro trabalhava. O apartamento do lado era igual na disposição do espaço, mas sem os
melhoramentos introduzidos por Clara, que alterara significativamente o aspecto da casa. O vizinho,
um viúvo aprumado nos seus setenta e muitos, que já lá morava quando eles chegaram, era um
verdadeiro senhor , muitíssimo educado e agradável no trato.
Clara sabia que o vizinho estava reformado de uma carreira diplomática bastante conseguida e
respeitada pelos seus pares, que ocupara postos importantes na América do Sul e na Europa, que
tivera uma filha tardia da mulher que o acompanhara por esse mundo fora e que tinha morrido pouco
antes de eles se terem mudado para o prédio onde o embaixador morava agora sozinho.
A filha, que devia ter herdado o gosto do pai pelas viagens, pois trabalhava como hospedeira da
TAP, tinha cerca de trinta anos e era, portanto, mais ou menos da idade deles. Clara vira-a uma ou
duas vezes no prédio, por ocasião das suas visitas esporádicas ao pai. Comentara até com João
Pedro que era uma mulher bonita e igualmente extrovertida, mas não devia ser muito próxima do pai,
a avaliar pelas poucas vezes que o visitava. Já o embaixador falava sempre da filha com orgulho,
deixando escapar apenas uma vaga lamentação por ela ainda não ter casado e, dizia, por aquele
andar, não chegaria a conhecer os netos. Talvez por isso, o embaixador ficava tão encantado com os
gémeos e com o bebé que se demorava em simpatias quando os via à entrada do prédio. E, nas suas
voltas matinais, lembrava-se de comprar gomas para os miúdos. Os gémeos, cativados pelas
guloseimas, ganharam o hábito de lhe irem bater à porta ao chegarem da escola. Não entravam, pois
o embaixador preservava o seu sossego, mas cumpria com prazer o ritual de lhes entregar o saquinho
das gomas que esperava por eles diariamente na mesa da entrada.
Clara sabia muito da vida particular do senhor porque ele lhe a contava com eloquência e gosto
nesses encontros de vizinhos, mas também porque os pais dela já lhe tinham dito que, embora não o
conhecessem, sabiam perfeitamente quem era o embaixador e, inclusivamente, eram amigos de
primos dele. De modo que Clara considerava-o uma pessoa conhecida e tinha imensa simpatia por
ele.


Era espantoso que João Pedro passasse completamente ao lado desta proximidade entre a família e
o embaixador, ao fim daquele tempo todo a morarem no mesmo prédio e com tantas referências
agradáveis. Mas, enfim, era típico de João Pedro ficar-se por um bom dia ou uma boa tarde sumidos
e não se esforçar por trocar mais do que as estritas palavras de circunstância com o vizinho. O
embaixador ignorava diplomaticamente o desinteresse de João Pedro e não cometia a indelicadeza
de fazer qualquer comentário inconveniente, mas seria natural se não tivesse boa impressão dele. O

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