Um Homem Escandaloso

(Carla ScalaEjcveS) #1

dos acontecimentos que vivemos. Por outras palavras, a vida é feita de equívocos. Ora, não
interessava se Cristiane era a reprodução em pessoa da mulher do sonho de João Pedro, o importante
é que João Pedro acreditava nisso.


Nessa manhã, já sentado a uma mesa no café, perdeu-se em pensamentos, deixou esfriar a bica
antes de a beber, teve de pedir outra. Demorou-se a processar mentalmente a experiência surreal que
acabara de ter, pois subsistia na sua mente a recordação inexplicável do sonho que tivera.
Perguntava-se sobre o significado das imagens que o seu espírito reproduzira enquanto dormia. No
sonho, Cristiane e a outra jovem mulher agarravam-se despudoradamente a João Pedro, e ele fazia o
mesmo, estreitava-as entre os braços e afundava o rosto nos seus cabelos lisos, macios,
inebriantemente perfumados. Ao encontrar-se com Cristiane, João Pedro não se sentira intimidado e,
se não fosse o espanto de a reconhecer sem nunca a ter visto, teria conversado com ela como se fosse
uma amiga íntima. Deveria então concluir que, ao contrário do que sempre julgara, as mulheres
bonitas não lhe estavam vedadas?
O mais natural naquela situação seria João Pedro estar siderado, senão mesmo aterrado, com a
intempestiva descoberta da sua insuspeita capacidade de sonhar o futuro, porque, enfim, o espírito
pregara-lhe uma partida, fizera-o entrar em terreno desconhecido. Mas não, João Pedro não se sentia
nada preocupado, o que ele sentia era uma estranha euforia e um justificado alívio.


Durante anos, João Pedro aferrara-se quase patologicamente a uma rigorosa rotina, cujo objectivo
se destinava a proteger a todo o custo a privacidade. Não saía muito, não falava com estranhos, não
frequentava lugares que não conhecia e, num dia normal, limitava os seus movimentos ao bairro onde
morava. Ia ao café, à loja onde comprava material de pintura, à escola dos gémeos para os trazer
para casa ao fim da tarde, tudo isto num raio de pouco mais que um quilómetro em redor do seu
prédio. Fazia os percursos habituais a pé, tinha o carro à porta, mas raramente o usava.
Na prática, só se mantinha a par das novidades nacionais pela televisão, pelo jornal e pela internet.
Se era inaugurado um centro comercial ou um cinema, se o papa vinha de visita, ou se o país acolhia
uma importante prova desportiva que concentrasse os olhos do mundo em Portugal, João Pedro
acompanhava tudo com curiosidade, mas não denotava o menor interesse em participar nesses
eventos, que a maioria das pessoas seria capaz de dar um braço para conseguir entrar. Esta aparente
indiferença pelos grandes ou pequenos acontecimentos não reflectia o que ia na cabeça dele. João
Pedro era um devorador insaciável de notícias, via os jornais televisivos, lia muito, vasculhava
avidamente a internet. Vibrava intensamente com estas coisas, mas depois sentia uma enorme aversão
em frequentar espaços públicos e enganava-se a si próprio, autoconvencia-se de que não tinha
vontade, e lá se deixava ficar por casa, tomado pela beatífica letargia do sofá. Não tinha noção disso,
mas estivera perigosamente à beira de padecer de agorafobia.


O comportamento de João Pedro também contribuíra para o afastar de Clara. Ela desistira há muito
de o arrastar para fora de casa e, embora não saísse tanto quanto gostaria, acabava por ter uma vida
social sem ele. Ia jantar fora ou ao cinema com a bênção de João Pedro que, arvorando uma falsa
generosidade, oferecia-se para ficar em casa a tomar conta das crianças. Clara sugeria que
contratassem uma rapariga, mas João Pedro recusava-se terminantemente a entregar os filhos aos
cuidados de terceiros. Era uma discussão insana, desgastante e inútil, que acabava sempre com

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