16 • Público • Quinta-feira, 19 de Setembro de 2019
SOCIEDADE
NUNO FERREIRA SANTOS
TC faz lei de ‘barrigas de aluguer’ voltar
à estaca zero. BE insiste no Parlamento
TC critica poder limitado dado pela lei à gestante para voltar atrás
Era o Ænal esperado, após os deputa-
dos terem aprovado uma nova versão
“coxa” da lei da gestação de substitui-
ção, no último plenário de Julho, em
que se retirava do diploma a norma
sobre os prazos para a revogação do
seu consentimento: o Tribunal Cons-
titucional (TC) voltou a considerar
inconstitucionais algumas normas da
lei das “barrigas de aluguer”, o que
inviabiliza a sua aplicação.
A decisão foi tomada ontem, depois
do pedido de Æscalização preventiva
do Presidente da República, e os argu-
mentos utilizados são os mesmos aos
quais o TC já tinha recorrido: o facto
de a gestante ter um poder bastante
limitado para poder voltar atrás na
decisão de entregar a criança aos futu-
ros pais é uma restrição que constitui
“violação do direito ao desenvolvi-
mento da personalidade da gestante,
interpretado de acordo com o princí-
pio da dignidade da pessoa humana,
e do direito de constituir família”.
O Presidente da República pedira,
no Ænal de Agosto, a Æscalização pre-
ventiva da constitucionalidade da lei,
aprovada pelo BE, pelo PS e por 22
deputados do PSD no último plenário
da legislatura. Marcelo considerava
que o diploma não respondia aos
pedidos do tribunal.
No TC, só um juiz conselheiro
votou contra a decisão de declaração
de inconstitucionalidade — Cláudio
Monteiro, indicada pelo PS. Mariana
Canotilho e Maria de Fátima Mata
Mouros apresentaram declarações de
voto individuais e houve uma outra
conjunta dos conselheiros Gonçalo
de Almeida Ribeiro, Fernando Vaz
Ventura, Joana Fernandes Costa e
Lino Rodrigues Ribeiro.
Apesar de ser uma decisão “expec-
tável” e para a qual o BE tinha avisado
quando o diploma foi votado em
Julho, o deputado Moisés Ferreira diz
que é uma “desilusão”, sobretudo
para as muitas mulheres que, por
motivos de doença, “continuarão a
não conseguir realizar o desejo de
serem mães”. Foi um “tempo perdi-
do” aquele que o processo de altera-
pudesse ter um Ælho biológico e as
duas estão à espera “há muito tem-
po”. “Para a lei portuguesa, quem dá
à luz é que é mãe”, lamenta Joana, da
direcção da Associação Portuguesa
de Fertilidade.
As dúvidas de Marcelo recaíam
sobre o texto que fora aprovado não
responder totalmente à primeira
declaração de inconstitucionalidade,
em 2018. O TC analisou então a lei a
pedido de deputados do CDS e do
PSD e, embora tenha considerado
constitucional o regime da gestação
de substituição, “chumbou” as nor-
mas sobre condições do consenti-
mento da grávida e regras da autono-
mia da gestante e futuros pais.
Se o BE conseguiu reformular as
questões relativas ao contrato de for-
ma a conseguir o apoio imprescindí-
vel de deputados do PSD (porque o
PCP votou contra), não foi capaz de
fazer o mesmo acerca das condições
para que a gestante possa desistir de
entregar a criança.
Na primeira versão da lei estava
prevista a possibilidade de revogação
do consentimento da gestante só no
início dos processos terapêuticos de
PMA — norma considerada inconsti-
tucional —, e o BE tentou depois intro-
duzir uma norma que permitia à ges-
tante revogar o seu consentimento
até ao momento de registo da criança,
algo que em vários hospitais pode ser
feito até a grávida ter alta ou até 20
dias após o nascimento numa conser-
vatória do registo civil. O PSD discor-
dou até ao Æm desta regra, impôs
disciplina de voto contra, chumban-
do-a, e o diploma aprovado deixou de
ter referências à possibilidade de a
grávida desistir. O resultado foi uma
lei que não cumpria o imposto pelo
TC no acórdão de Abril de 2018.
A primeira versão da lei das chama-
das “barrigas de aluguer”, proposta
pelo Bloco, foi aprovada a 13 de Maio
de 2016 no Parlamento, com a ajuda
do PSD. Nessa altura, entre os 24
deputados do PSD que votaram a
favor também estavam o então presi-
dente do partido, Passos Coelho, e os
vice-presidentes Paula Teixeira da
Cruz e Jorge Moreira da Silva.
Constitucional diz que diploma viola direitos da personalidade da gestante, ao restringir a possibilidade de
desistir ou de entregar a criança aos futuros pais. “Há crianças que não estão a nascer”, lamenta Eurico Reis
Gestação de substituição
Maria Lopes
e Alexandra Campos
[email protected]
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ções demorou no Parlamento e para
muitas mulheres será já mesmo
impossível serem mães porque dei-
xam de ter idade para preencher os
critérios.
O BE garante que vai continuar na
“corrida contra o tempo” na próxima
legislatura — o mais certo já no primei-
ro ano — e voltará a apresentar uma
proposta para tentar mudar a lei na
questão do consentimento da grávida,
que será a de permitir que esta possa
desistir de entregar a criança até ao
momento do seu registo, ou seja, até
20 dias depois do nascimento.
Questionado sobre se está conÆan-
te numa nova arrumação do Parla-
mento, Moisés Ferreira prefere “ape-
lar” aos partidos que votaram contra
a regra da revogação do consentimen-
to — PSD, CDS e PCP — para que pon-
derem a “urgência” de dar resposta a
mulheres que, devido a problemas de
saúde, não podem ser mães e em que
a gestação de substituição é a sua úni-
ca hipótese. O PÚBLICO questionou
o PS, mas não obteve resposta em
tempo útil. O CDS, recorde-se, pro-
meteu recorrer sempre ao TC, qual-
quer que seja a alteração.
Recurso à “clandestinidade”
Mesmo esperada, a decisão foi rece-
bida com consternação pelo ex-presi-
dente do Conselho Nacional de Pro-
criação Medicamente Assistida
(CNPMA), o juiz desembargador Euri-
co Reis. “Vai voltar tudo à estaca zero”
e, entretanto, “há crianças que não
estão a nascer e que vão continuar a
não nascer” por causa de todo este
processo, reage. E haverá pessoas
“empurradas para a clandestinidade”
para poderem recorrer a “barrigas de
aluguer” em “países onde não estão
garantidas condições de saúde”.
Desde Abril de 2018 (data da pri-
meira decisão do TC) até agora, “algu-
mas crianças não nasceram”, insiste,
recordando que, além dos dois casos
que já tinham avançado e acabaram
por não resultar em gravidez (um
deles era o de uma mãe que empres-
tava o útero à Ælha), havia “mais dez
na calha”. Joana Freire, uma mulher
sem útero que há anos aguarda o des-
fecho do processo, vai ter de conti-
nuar a esperar. Seria uma irmã a
emprestar-lhe o útero para que