Público - 19.09.2019

(Ron) #1

32 • Público • Quinta-feira, 19 de Setembro de 2019


CIÊNCIA


Como é que as noites mal


dormidas afectam a nossa saúde?


Ter horários regulares pode ser cru-
cial para a saúde — sabe-se que as
pessoas que têm insónias, mudanças
frequentes de fuso horário ou turnos
de trabalho nocturnos são mais sus-
ceptíveis a inÇamações intestinais e à
obesidade. Agora, num artigo cientí-
Æco publicado hoje na revista Nature ,
uma equipa com cientistas do Centro
Champalimaud, em Lisboa, desvenda
que o relógio biológico do cérebro
controla genes-relógio que, por sua
vez, indicam as horas do dia a um
grupo de células imunitárias determi-
nantes para a saúde intestinal. Quan-
do o relógio central deixa de dar indi-
cações aos pequenos relógios, essas
células deixam de ser pontuais e de
desempenhar funções importantes
no metabolismo. Qualquer mudança
nos nossos hábitos — como noites mal
dormidas — pode ter impacto nesta
dinâmica.
Estudos anteriores já tinham rela-
cionado alterações de ritmos biológi-
cos com problemas metabólicos asso-
ciados ao excesso de peso e às inÇa-
mações intestinais. “Os maus hábitos
de sono podem ter efeitos graves
sobre a saúde, provocando um leque
de doenças que possuem frequente-
mente uma componente imunitária,
tal como as inÇamações intestinais”,
assinala Henrique Veiga Fernandes,
investigador do Centro Champali-
maud que coordenou o estudo, num
comunicado da sua instituição.
Para entender por que é que isso
acontece, a equipa quis saber se as
células imunitárias intestinais eram
inÇuenciadas pelo ritmo circadiano,
período de cerca de 24 horas em que
o ciclo biológico de quase todos os
seres vivos se baseia.


Big Ben cerebral
Quase todas as células do corpo têm
uma “maquinaria genética interna”
que acompanha o ritmo circadiano
através da expressão de genes que
funcionam como pequenos relógios
que comunicam as horas às células,
os “genes-relógio”, explica-se no
comunicado. Desta forma, ajudam a
antecipar aos sistemas o que ocorrerá


Cientistas portugueses descobriram uma relação entre o relógio biológico cerebral e células imunitárias


cruciais para manter a saúde intestinal. Esta descoberta poderá contribuir para futuras terapias


CRISTINA GODINHO SILVA

Núcleo supraquiasmático de ratinho onde está o relógio biológico do cérebro

metabolismo saudável dos lípidos.
Mas, depois — como os intestinos
podem Æcar daniÆcados —, o Big Ben
cerebral indica a esse grupo de células
imunitárias para migrarem para os
intestinos, onde podem ser precisas
para combater possíveis invasores.
Porque é que as pessoas que traba-
lham à noite ou têm insónias são então
mais propensas a sofrer inÇamações
intestinais? “Tem tudo que ver com o
facto de este eixo neuro-imunitário
especíÆco estar tão bem regulado pelo
relógio do cérebro que qualquer
mudança nos nossos hábitos surte
efeitos imediatos nestas importantes
células primordiais”, responde o cien-
tista, acrescentando que isso acontece
em situações em que há comporta-
mentos deste tipo repetidos.

Uma surpresa
Para Henrique Veiga Fernandes, os
resultados foram “totalmente sur-
preendentes”: “Jamais teríamos ante-
cipado que estes glóbulos brancos
intestinais são tão pontuais! Sem reló-
gio desaparecem quase por completo
do intestino, deixam de saber viver
neste órgão, onde desempenham
funções tão importantes para o meta-
bolismo e a nossa defesa. O facto de
o relógio destas ILC++3 estar no fuso
horário do cérebro é também uma
enorme novidade.”
Apesar de este estudo ter sido feito
apenas em ratinhos, o investigador
informa que os genes-relógio estuda-
dos também são uma característica
das ILC3 humanas. Desta forma, pre-
vê-se que os mecanismos sejam seme-
lhantes no humano.
Além de ter permitido compreen-
der a razão pela qual os padrões de
sono desregrados podem levar a pro-
blemas metabólicos — como a obesi-
dade e o aumento do risco de doen-
ças inÇamatórias —, este estudo pode
ter contributos a nível clínico, como
indica Henrique Veiga Fernandes:
“Uma vez que identiÆcámos como é
que o código postal do intestino é
deÆnido nas ILC3, podemos pensar
em aumentar ou reduzir terapeuti-
camente esse mesmo código em
doenças do foro metabólico e inÇa-
matório.”

[email protected]

Biologia celular


Teresa Sofia Serafim


veis às perturbações dos genes-relógio
comandados pelo tal Big Ben cere-
bral. Assim, quando se eliminava a
expressão do gene-relógio ARNTL nas
ILC3, estas não sabiam a que horas
andavam. “Constatámos que o núme-
ro de ILC3 no intestino diminuía de
forma signiÆcativa, o que conduzia a
inÇamações severas e à acumulação
acrescida de gordura”, refere Henri-
que Veiga Fernandes.
Seguindo esta pista, estudou-se o
local onde tudo começa, o relógio
biológico do cérebro. Percebeu-se
então que, quando este era perturba-
do, perdia-se o “código postal” das
ILC3 e estas eram incapazes de chegar
ao seu destino Ænal, os intestinos.
Façamos então toda a viagem. As
ILC3 são produzidas na medula óssea.
A partir daí, migram pelo organismo

onde são alojadas nos intestinos (de
forma transitória) através da expres-
são de proteínas na sua membrana,
o tal código postal. “Um pouco à ima-
gem de uma carta que colocamos no
correio”, compara o investigador.
Quando o Big Ben cerebral deixa de
comunicar com os genes-relógio, as
ILC3 não expressam essas proteínas
e não chegam aos intestinos.
“O relógio do cérebro é o Big Ben
das ILC3, ou seja, as ILC3 estão no fuso
horário do cérebro”, frisa ao PÚBLICO
Henrique Veiga Fernandes. “Desta
forma, alterações comportamentais
que desregulem o Big Ben cerebral
alteram de forma profunda os padrões
de expressão genética das ILC3.”
Por exemplo, durante as refeições,
o relógio do cérebro diminui a activi-
dade das ILC3 para assim promover o

a seguir. Por exemplo, avisam-nos
quando serão horas de dormir.
Mas todos estes pequenos relógios
autónomos precisam de ser sincroni-
zados por um relógio biológico cen-
tral que está no cérebro. Ao coorde-
nar todos os relógios do corpo, fun-
ciona como se fosse um “Big Ben
cerebral”. “A tarefa do grande relógio
do cérebro — que recebe informação
directa da luz do dia [através dos
olhos] — consiste, portanto, em sin-
cronizar os pequenos relógios que
existem dentro do corpo de forma a
que todos os sistemas Æquem por sua
vez sincronizados”, diz o cientista.
Em experiências com ratinhos, a
equipa percebeu que as células linfói-
des inatas de tipo 3 (ILC3) — que com-
batem infecções ou regulam a absor-
ção de lípidos — eram bastante sensí-
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