20 • Público • Segunda-feira, 9 de Setembro de 2019
SOCIEDADE
“Escusam
de gritar, que
Deus
não é surdo”
Ruído provocado
por algumas igrejas
evangélicas deixa
vizinhos de cabelos
em pé. Há gritos e
choros, música e
ampliÄcadores de
som. Quem é alvo
das queixas diz que
está a ser vítima de
intolerância
religiosa
R
ita Rocha chega a ter
pensamentos pecami-
nosos: “Tenho de fazer
qualquer coisa, não
aguento mais.” O cal-
vário desta antiga cabe-
leireira septuagenária
começou há dois anos,
altura em que o antigo
armazém que tinha no
rés-do-chão por baixo de casa, no
Carregado, foi ocupado por uma igre-
ja de inspiração evangélica.
O barulho que lhe irrompe casa
dentro várias vezes por semana é
variado, descreve: “Uns dias parece
tourada, outros um jogo de futebol,
outras vezes parece que andam
todos à pancada.” Há gritos e canto-
rias ampliÆcados por aparelhagens
sonoras, choros e orações. Nem
podia ser de outra maneira, assinala
o pastor que lidera em Portugal a
outras actividades, os lugares de cul-
to podem instalar-se sem licencia-
mento prévio ou autorização admi-
nistrativa “mesmo em prédios licen-
ciados para habitação ou comércio”,
bastando para o efeito o acordo do
proprietário do edifício em causa ou
da maioria dos condóminos. Em
caso de ruído, prevê ainda o mesmo
diploma legal, “o presidente da
câmara municipal dispõe de poderes
que evitam a ocorrência de danos à
saúde e sossego dos moradores”,
estando habilitado a suspender ou
encerrar preventivamente os tem-
plos prevaricadores.
Rita Rocha bem percorreu a via
sacra das queixas junto da autarquia
e das autoridades policiais, sem
sucesso. Até que houve um dia em
que lhe apontaram o caminho: os
julgados de paz. A luz chegou em for-
ma de sentença no Ænal de Fevereiro
passado, quando o julgado de paz do
Oeste determinou que a Assembleia
de Deus Fogo Para Europa insonori-
zasse o templo, obra a ser custeada
também pelo senhorio do imóvel,
que por sinal é ex-marido da cabelei-
reira. A igreja foi ainda condenada a
indemnizar a septuagenária em 2500
euros, coisa que não fez até agora.
“Utilizar um prédio situado numa
zona habitacional como local de cul-
to, ponderando o direito ao repouso
de qualquer cidadão, a qualidade de
vida dos habitantes dessa zona, cons-
titui um uso anormal do prédio para
efeitos do Código Civil”, escreve a
autora da sentença, Elena Burgos.
“Se da referida utilização resulta
para os vizinhos incómodos e mal-
estar, existe prejuízo substancial,
dado que o que está em causa é a sua
residência, ou seja, o centro da sua
vida pessoal, onde têm o direito a
não serem perturbados.”
Em linha de conta foi levado tam-
bém o facto de Rita Rocha ter sido
diagnosticada e medicada para uma
depressão causada por este proble-
ma. “Tomei a primeira caixa, mas a
Ana Henriques
Assembleia de Deus Fogo Para Euro-
pa, Robson Ferreira: “A nossa igreja
é um organismo vivo, e uma igreja
viva faz barulho. A gente canta, lou-
va, faz pregação... o ruído é uma
parte importante da adoração. Às
vezes estão no templo do Carregado
80 a 100 pessoas.”
Cultos pentecostais vindos do Bra-
sil, como é o caso, têm na sua génese
rituais que aos olhos de outros Æéis
podem parecer histriónicos. Mas
aquilo de que a vizinhança de alguns
destes templos se tem vindo a queixar
é sobretudo de martírio auditivo, ou
não fossem as celebrações abrilhan-
tadas por música de bateria, contra-
baixo, violão e outros instrumentos.
O facto de o ruído ser feito ao abrigo
da lei da liberdade religiosa torna
mais difícil, para os descrentes da
mística do barulho, fazerem valer o
seu direito ao descanso do que se esti-
vesse em causa uma discoteca, por
exemplo.
Ao contrário do que sucede com