Público • Segunda-feira, 9 de Setembro de 2019 • 21
SOCIEDADE
segunda já não, dava-me muita sono-
lência”, recorda a idosa. Vale-lhe um
ansiolítico que já usava antes: “Quan-
do penso que eles já estão para che-
gar, o meu coração começa a bater
com muita força e tomo umas meta-
dezinhas de Sedoxil.”
As obras mandadas fazer pelo jul-
gado de paz de pouco ou nada adian-
taram, assegura. Já o pastor Robson
Ferreira põe a hipótese de o prédio
não estar preparado para receber
habitação, mas estranha que as duas
horas de culto seguidas que ali têm
lugar nalguns dias da semana possam
causar tamanha perturbação. “Não
existe nenhum comprovativo técnico
de que o ruído esteja acima do permi-
tido por lei”, repete. Sucede que exis-
te jurisprudência, em particular do
Supremo Tribunal de Justiça, segun-
do a qual o direito ao descanso pode
estar em risco, mesmo quando não
sejam ultrapassados os decibéis esta-
belecidos no Regulamento Geral
sobre o Ruído. “O direito de persona-
lidade [neste caso ao sossego] preva-
lece sobre o regulamento do ruído”,
preconiza um acórdão do Tribunal
da Relação de Guimarães do ano pas-
sado, sobre um litígio de um casal
contra uma instalação fabril à sua
porta. E isso mesmo disse também o
julgado de paz do Oeste no caso do
templo do Carregado. Porém, o facto
de o direito à liberdade religiosa ter
protecção constitucional, tal como de
resto o direito ao descanso, tem tro-
cado as voltas a alguns daqueles cujos
tímpanos são mais sensíveis.
“Exorcismos” de madrugada
Tal como Rita Rocha, também José
Luís Sousa, um técnico de aeronáutica
reformado, tem tentado mover céus
e terra desde que no rés-do-chão do
condomínio em que mora, em Porti-
mão, se instalou a Igreja Universal do
Reino de Deus, já lá vai uma década.
A maioria dos condóminos autorizou
o funcionamento do culto sem perce-
ber no que se estavam a meter.
Nesta antiga garagem com mais de
mil metros quadrados é frequente
juntarem-se centenas de pessoas.
Lourdes Santos, uma septuagenária
que mora no primeiro andar com o
marido holandês, explica como o
barulho “entra pelo WC e pelo quarto
adentro, atravessa o andar todo e vai
parar à cozinha”.
Numa madrugada de Setembro de
2014, eram 3h00, acordaram com
“gritos de exorcismos, como nos Æl-
mes”. O adiantado da hora explica-se
com o facto de o ritual ter decorrido
em simultâneo com cerimónias do
mesmo género no Brasil. O auto de
notícia da PSP explica que, mesmo
depois de alertado pelas autoridades
para a necessidade de descanso dos
habitantes, os Æéis prosseguiram com
o culto. “Ouviam-se gritos e pessoas
a entoarem cânticos”, descreve um
dos agentes que esteve no local,
acrescentando que vários moradores
vieram para a rua, exaltados.
O marido de Lourdes Santos che-
gou a partir azulejos do seu próprio
WC à martelada, numa tentativa
desesperada de fazer chegar o seu
contra-ruído ao andar de baixo. Nes-
ta guerra sem Æm à vista, a septuage-
nária entende que a situação, que
afecta não só alguns condóminos des-
te edifício como habitantes de um
edifício contíguo, já foi pior. “Mas
ainda no Æm-de-semana passado
acordei às 7h30 com os gritos e can-
torias deles”, ressalva.
Foram já várias as acções desenca-
deadas em tribunal, umas dos condó-
minos contra a IURD e outras no sen-
tido contrário. “A IURD ganhou
todos”, informa um dos seus advoga-
dos, Martim Menezes, do escritório
CCA Ontier, segundo o qual foram
feitas “muitas obras de insonoriza-
ção”. Porém, falta ainda decidir um
último processo que, nas palavras da
representante legal dos condóminos,
SoÆa Lopes Almeida, pode ditar a
expulsão da igreja do prédio de habi-
tação. Como os juízes não se enten-
dem quanto ao tribunal competente
para dirimir o litígio, não se espera
uma decisão para tão cedo. Entretan-
to, contam Lourdes Santos e José Luís
Sousa, houve já famílias que se muda-
ram por não aguentarem o barulho.
Os protestos do “instigador deste
movimento” radicam, para o advo-
gado da CCA Ontier, em motivos
inconfessos: o técnico de aeronáuti-
ca “pretende obrigar a IURD a com-
prar a sua fracção por um preço
despropositado”. José Luís Sousa
nega-o. “A IURD tem 140 locais de
culto em Portugal e em nenhum tem
problemas pendentes que violem o
direito ao descanso dos vizinhos”,
informa Martim Menezes.
O pastor do Fogo para a Europa diz,
por seu turno, que a sua igreja foi apa-
nhada numa disputa da cabeleireira
com o ex-marido. E acusa-a de intole-
rância religiosa. “Disse no julgado de
paz que a nossa igreja era o inferno”,
indigna-se, para a seguir dar provas
da sua boa vontade: “Já retirámos a
bateria e o contrabaixo das cerimó-
nias do Carregado.”
Ao contrário de Portugal, onde não
abundam, litígios deste género têm
feito escola na justiça brasileira, dada
a profusão de igrejas pentecostais. Há
uns anos as queixas contra poluição
sonora motivada pelos cultos chega-
ram a liderar as participações ao
Ministério Público no Estado de São
Paulo. E aqueles que acreditam no
sossego da oração espalharam a pala-
vra entre os descrentes: “Escusam de
gritar, que Deus não é surdo.”
Os sinos na torre da igreja
Há outras queixas. Com outros alvos:
os sinos. Soam durante todo o santo
o dia, e paróquias há em que nem
durante a noite se calam. Volta e
meia, as doces badaladas dos sinos
das tradicionais igrejas portuguesas
transformam-se em marteladas capa-
zes de fazer perder a paciência a um
santo. Na igreja de Vera Cruz, em
Aveiro, tudo andava na paz do senhor
até à chegada de um novo padre, em
- “Foram colocados martelos
adicionais no exterior dos sinos exis-
tentes, comandados por aparelhagem
electrónica, que accionava um ‘reló-
gio’, que debitava estridentes e
vibrantes marteladas, a um ritmo de
15 em 15 minutos, desde as 8h até às
20h”, descreve uma sentença do Tri-
bunal da Relação de Coimbra. A
indignação de alguns paroquianos
tomou forma de abaixo-assinado,
mas só em 2005, após medição acús-
tica, a Câmara de Aveiro mandou a
igreja baixar “imediatamente” o volu-
me dos sinos, que tinha subido até
aos 74 decibéis, 32 acima do permiti-
do por lei.
Há cerca de duas décadas, a insta-
lação de equipamentos de ampliÆca-
ção sonora nas torres sineiras obri-
gou mesmo a Conferência Episcopal
Portuguesa a avisar as dioceses para
a necessidade de cumprirem a lei,
em especial durante o período noc-
turno. Em 2013, o Provedor de Justi-
ça escrevia que, apesar de o uso dos
sinos assumir “um cariz especial de
convocação e anúncio pastoral”,
havia também que salvaguardar o
respeito pela qualidade de vida das
populações. “O ruído produzido por
uma instalação sonora associada aos
sinos de uma igreja tem de respeitar
os limites do Regulamento Geral do
Ruído, quer no que respeita ao nível
sonoro, quer no que toca à suspen-
são durante o período nocturno”,
preconizava o Provedor, aconselhan-
do silêncio das 22h às 9h. Prova de
que a questão é recorrente é que a
actual Provedora de Justiça volta a
referir-se ao problema no seu mais
recente relatório anual.
NUNO FERREIRA SANTOS
A nossa igreja é um
organismo vivo,
e uma igreja viva
faz barulho. A gente
canta, louva, faz
pregação... o ruído
é uma parte
importante da
adoração
Robson Ferreira
Pastor da Assembleia
de Deus Fogo Para Europa [email protected]