Psique - Edição 156 (2019-02)

(Antfer) #1
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pode ser o próprio jogo nem a es-
sência do jogador. Errar faz parte do
acerto, assim como é a sombra que
determina a qualidade da fotografia.
O mérito de uma pessoa em qualquer
idade não pode ser mensurado por
um desempenho mais ou menos bri-
lhante, pois esses parâmetros depen-
dem de inúmeros fatores externos,
inclusive o objetivo e as preferências
pessoais de cada qual. Ninguém ad-
mira tanto os pais quanto os filhos,
e é para eles que a criança estabelece
a sua primeira luta por aprovação. Se
suas dificuldades são tratadas com
respeito e amorosidade, incentivo e
senso de realidade, terão uma oportu-
nidade muito mais real de superá-las.
Mas por vezes os pais, até por vai-
dade, determinam padrões quase ina-
tingíveis para a criança: afinal, que
diferença faz na prática saber ler aos
4 anos? Ao entrarem no ensino fun-
damental, terão que voltar a passar
pelo mesmo processo, mas já desmo-
tivados pela falta de estímulo frente à
maioria dos colegas a quem não vão
superar a não ser momentaneamente.
Assim, também, muitos pais se
desesperam ao perceber que o filho
não tem interesse especial para os
esportes nem por ganhar medalhas
ou ir às Olimpíadas e agem como se
fossem traídos pela vida que em uma
segunda chance não lhes deu essa
oportunidade pessoal.
Amamos nossos filhos e alunos,
mas podemos não apreciar um ou
outro comportamento deles. Entre-
tanto, estimular e dar oportunidade
de perceber o erro como uma oca-
sião de crescimento são educar real-
mente para a busca pelo acerto, pela
felicidade emocional e também pela
saúde mental.

veria valer muito mais que um erro
cometido em outra questão. A ava-
liação escolar cursa em muitas esco-
las, ainda hoje, comparativamente a
qualquer planilha financeira à qual
venha a ser comparada.
Assim, são os erros e não o esfor-
ço que determinam o valor do aluno.
Crianças e jovens não recebem nada
por mérito ao acerto ou à dedicação.
Situações contraditórias são de-
sencorajadoras: de um lado evita-
mos, desde cedo, que as crianças se
frustrem com situações corriqueiras,
e, de outro, cobramos seus erros
como se estes fossem o espelho do
valor da criança.
Sentindo-se limitados, diminuídos,
inseguros frente à condenação por suas
falhas, crianças e jovens são ao mesmo
tempo envolvidos pelas exigências dos
rankings mais desafiadores. Ao invés
de terem motivação para pensar em
como fazer de modo diferente e bus-
car o acerto, objetivando o sucesso
de modo criativo, se acomodam pelo
desvelo ou incriminação excessiva da
família. Uma acoberta ficticiamente o
erro, a outra o perpetua.
Errar faz parte do jogo, mas não

Maria Irene Maluf é especialista em Psicopedagogia, Educação Especial e
Neuroaprendizagem. Foi presidente nacional da Associação Brasileira de
Psicopedagogia – ABPp (gestão 2005/07). É autora de artigos em
publicações nacionais e internacionais. Coordena curso de
especialização em Neuroaprendizagem. [email protected]
IMAGENS: SHUTTERSTOCK/ ARQUIVO PESSOAL


to da falta deste ou daquele objeto,
passar por momentos de desassos-
sego, tendo que reconhecer que foi
descuidado, é algo que não cabe
mais em nossa sociedade atual de
conduta impecável.
Segundo esse modo de pensar,
deixar a criança se frustrar é uma tra-
gédia! Não a educa, mas tira a ilusão
de ser “o cara” a todo instante, o que
reafirma a máxima da década: “meu
filho nasceu para ser feliz”. Porém,
na prática significa: não ter limites,
não esperar, não “receber” notas bai-
xas, não ser chamada a atenção, não
ter que se adaptar ao meio, já que ob-
viamente são as outras pessoas e o
ambiente que devem se render a esse
ser tão especial.
Dizer a esse tipo de pais que o
filho errou provoca um tsunami ide-
ológico, sem base alguma na realida-
de: nascer para ser “feliz”, pior que
conto de fábulas, não permite que a
criança participe legitimamente des-
sa construção, justamente moldada
por meio de erros que devem ser vis-
tos e revisitados para que se perceba
o contraste das situações, dos pen-
samentos e sentimentos. Só assim o
indivíduo aprende a ter consciência
da falta e da plenitude, sente motiva-
ção, determina objetivos e desenvol-
ve a resiliência.
Ao se prender ao acerto perma-
nente, a sociedade se tornou irra-
cional em relação ao imenso valor
do erro: a educação, tanto familiar
como a que vemos na escola, é fre-
quentemente focada no erro, mas
não no erro calibrado pelas oportu-
nidades que pode criar, mas pelo seu
valor negativo, somente o apontando
como algo a ser evitado a todo cus-
to, escondido, apagado e não como
ponto de partida para o crescimento.
Na escola, o aluno recebe sua
nota não pelos acertos, mas pelos
erros. Uma resposta muito bem re-
digida, que demonstre compreensão
e trabalho intelectual da criança, de-

SÃO OS ERROS
E NÃO O ESFORÇO
QUE DETERMINAM
O VALOR DO
ALUNO. CRIANÇAS
E JOVENS NÃO
RECEBEM NADA
POR MÉRITO
AO ACERTO OU
À DEDICAÇÃO

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