MARÇO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 11
estação de Kunming, em março de
2014 (31 mortos e 143 feridos), e o de
maio de 2014 em um mercado de
Urumqi (43 mortos e mais de noventa
feridos). Seguiram-se outros atenta-
dos de menor escala, e 2014 foi um ano
sombrio, com mais de trezentas víti-
mas do terrorismo, contra apenas um
punhado por ano durante a primeira
década do milênio.
Mais ou menos ao mesmo tempo,
a implantação do PIT no Afeganistão,
ao lado do Talibã, e principalmente
na Síria, onde conseguiu estabelecer
redes, deixou os chineses ainda mais
preocupados. O envolvimento do PIT
no conflito sírio fez crescer seus efeti-
vos e seu apoio. Depois de mostrar
serviço em combate ao lado dos ou-
tros componentes da Frente Al-Nus-
ra, e agora de Hayat Tahrir al-Sham,
no noroeste da Síria, ele foi equipado
com material pesado e conseguiu
mobilizar centenas de combatentes.
O PIT era uma ameaça aos interesses
chineses em algumas regiões onde
podia projetar ações – Paquistão,
Afeganistão, Oriente Médio –, mais
do que no próprio Xinjiang. Na verda-
de, a sociedade uigur parecia pouco
inclinada a aderir à sua interpretação
rígida do islã, e a “Grande Muralha de
Aço”^13 desejada por Xi continuava a
limitar significativamente sua mar-
gem de manobra na China.
No entanto, para a população um
limite foi ultrapassado com a onda de
detenções e condenações (incluindo a
pena capital), após as rebeliões de
- Para muitos, estava encerrada a
idade de ouro dos anos 1980, quando
conflitos entre comunidades ainda
podiam ter mediadores. O ressenti-
mento contra o poder central chinês se
transformou em um ressentimento
contra os hans, entendidos como colo-
nizadores arrogantes que considera-
vam os outros como indivíduos de se-
gunda classe, cuja única opção era
submeter-se e sinizar-se, para se tor-
narem aceitáveis.
O “viver juntos” proposto pelo go-
verno central baseava-se em uma ho-
mogeneização demográfica e cultural
sinizadora e em um forte controle das
instituições da região autônoma pelos
quadros hans. Enquanto a língua uigur
dava lugar ao mandarim nas escolas, e
o controle da polícia e da administra-
ção era incessantemente reforçado, a
implantação han seguia seu curso e
exacerbava na população local a sen-
sação de estar sendo afogada pelos
chineses.^14
No início dos anos 2010, os hans re-
presentavam 40% dos 22 milhões de
habitantes da região (contra 6% em
1949), e os uigures, mais de 45% (con-
tra 75% em 1949). Essa supremacia na
administração e na economia, junto
com a desconfiança dirigida aos nati-
vos, contribuiu para manter no ponto
mais baixo na escala social uma par-
cela significativa dos uigures. Embora
o Estado garantisse mais da metade do
orçamento regional e por muito tempo
tenha permitido um crescimento de
dois dígitos por meio de investimentos
maciços, os uigures, com menos edu-
cação ou simplesmente discriminados
mesmo tendo diploma, não tiraram
grandes benefícios desse crescimento.
Como novo homem forte do país, o
presidente Xi prometeu erradicar pela
raiz a ameaça terrorista, redefinindo a
abordagem de segurança. Organismos
de contraterrorismo foram reestrutu-
rados e colocados sob uma supervisão
mais estreita do governo. O controle de
minorias e assuntos religiosos, antes
sob a responsabilidade de diversas ad-
ministrações, além de associações re-
ligiosas ditas “representativas”, pas-
sou ao encargo do centralizador
Departamento do Trabalho da Frente
Únida do Partido.^15
O aparato jurídico também foi re-
modelado. Em novembro de 2014, a
Assembleia da Região Autônoma do
Xinjiang já aprovara uma lei refor-
mando as regulações religiosas regio-
nais de 1994, com o acréscimo de de-
zoito artigos para modernizar o
sistema de acreditação dos imãs, de
controle das mesquitas e do que resta-
va das estruturas de ensino religioso,
que já sofriam intensa vigilância.^16 Em
2017 foi lançado um novo pacote de
medidas em nome da luta contra o “ex-
tremismo religioso”. Para muitos mu-
çulmanos, tais medidas têm uma di-
mensão intrusiva: foi proibido ter a
barba considerada “anormal” e usar o
véu em locais públicos...
As coisas ficaram ainda piores des-
de que Chen Quanguo assumiu a fren-
te do PC local, em 2016, com as mes-
mas funções que exercia na região
autônoma do Tibete. Segundo Adrian
Zenz,^17 o orçamento destinado à segu-
rança explodiu. Forças policiais espe-
ciais e equipamentos de contenção de
revoltas foram reforçados. O recruta-
mento atingiu o pico entre meados de
2016 e de 2017, com mais de 90 mil po-
liciais, doze vezes mais que em 2009,
com o objetivo de implantar uma an-
tena dos Escritórios de Segurança Pú-
blica em cada vila ou povoado. Chen
também fortaleceu o programa Como
1 “‘Eradicating ideological viruses’. China’s campaign
of repression against Xinjiang’s Muslims” [“Erradi-
cando vírus ideológicos”. A campanha de repres-
são chinesa contra os muçulmanos do Xinjiang],
Human Rights Watch, Nova York, 9 set. 2018.
2 Adrian Zenz, “‘Thoroughly reforming them towards a
healthy heart attitude’: China’s political re-education
campaign in Xinjiang” [“Uma verdadeira reforma em
busca de sentimentos saudáveis”: a campanha chi-
nesa de reeducação política no Xinjiang], Central
Asian Survey, Abingdon-on-Thames, set. 2018.
3 A dinastia Han durou de 206 a.C. a 220 d.C.; a Sui,
de 581 a 618; e a Tang, de 618 a 907. Mas seu
domínio sobre o Xinjiang não necessariamente se
manteve ao longo de todo o reinado.
4 Essas brigadas, criadas em 1954 e mantidas sob
comando militar, são responsáveis tanto por coloni-
zar como por proteger as fronteiras.
5 Emirado de Kashgar de Yacoub Beg, entre 1864 e
1877; Emirado de Khotan, depois República Turca
Islâmica do Turquistão Oriental em Kashgar, em
1933-1934; República Pró-Soviética do Turquis-
tão Oriental nos três distritos do norte do Xinjiang
entre 1944 e 1949.
6 Dru Gladney, “Internal colonialism and the Uyghur
identity: Chinese nationalism and its subaltern
subjects” [Colonialismo interno e identidade uigur:
o nacionalismo chinês e seus sujeitos subalter-
nos], Cahiers d’études sur la Méditerranée orien-
tale et le monde turco-iranien (Cemoti), n.25, Pa-
ris, jan.-jun. 1998.
7 Formados no modelo afegão, os jihadistas batalha-
ram por mais de dez dias.
8 “East Turkistan forces cannot get away with impu-
nity” [Forças do Turquistão Oriental não podem
sair impunes], People’s Daily, Information Office of
State Council, Beijing, 21 jan. 2002.
9 Cf. “China: State control of religion, update number
1” [China: controle estatal da religião, dados atuali-
zados 1], Human Rights Watch, mar. 1998.
10 “Devastating blows: Religious repression of
Uighurs in Xinjiang” [Golpes devastadores: repres-
são religiosa sobre os uigures no Xinjiang], Human
Rights Watch, 11 abr. 2005.
11 “China: Gross violations of human rights in the Xin-
jiang Uighur autonomous region” [China: brutais vio-
lações dos direitos humanos na região autônoma ui-
gur do Xinjiang], Anistia Internacional, 31 mar. 1999.
12 Ler Martine Bulard, “Quand la fièvre montait dans
le Far West chinois” [Quando a temperatura subiu
no extremo oeste da China], Le Monde Diplomati-
que, ago. 2009.
13 Instalações de defesa construídas sob as monta-
nhas. Cf. Tom Phillips, “China: Xi Jinping wants
‘Great Wall of Steel’ in violence-hit Xinjiang” [Chi-
na: Xi Jinping quer “Grande Muralha de Aço” con-
tra violência no Xinjiang], The Guardian, Londres,
11 mar. 2017.
14 Gardner Bovingdon, The Uyghurs in Xinjiang:
Strangers in Their Own Land [Uigures do Xinjiang:
estrangeiros em sua própria terra], Columbia Uni-
versity Press, Nova York, 2010.
15 Jérôme Doyon, “Actively guiding religion under Xi
Jinping” [Empenho no controle da religião por Xi
Jinping], Asia Dialogue, 21 jun. 2018. Disponível
em: <http://theasiadialogue.com>.
16 “The modern Chinese State and strategies of control
over Uyghur Islam” [O Estado chinês moderno e
suas estratégias de controle sobre o islã uigur], Cen-
tral Asian Affairs, v.2, n.3, Washington, DC, 2015.
17 Adrian Zenz, op. cit.
18 Josh Chin e Clement Bürge, “Twelve days in Xin-
jiang: How China’s surveillance State overwhelms
daily life” [Doze dias no Xinjiang: como o vigilante
Estado chinês domina a vida cotidiana], The Wall
Street Journal, Nova York, 19 dez. 2018.
19 Afeganistão, Arábia Saudita, Argélia, Azerbaijão,
Cazaquistão, Egito, Emirados Árabes Unidos, Iê-
men, Indonésia, Irã, Iraque, Líbia, Malásia, Nigéria,
Paquistão, Quênia, Quirguistão, Rússia, Somália,
Síria, Sudão do Sul, Tailândia, Tadjiquistão, Tur-
quia, Turcomenistão, Uzbequistão.
uma Família: funcionários hospe-
dam-se regularmente com os habitan-
tes, às vezes por vários dias, para iden-
tificar comportamentos subversivos,
pressionar para que sejam feitas de-
núncias e realizar educação patrióti-
ca. Mais de 1 milhão de funcionários
estariam envolvidos, especialmente
nas áreas rurais do sul.
ESTUDO DE COMPORTAMENTOS “INCOMUNS”
Além disso, o Xinjiang tornou-se
um vasto campo de teste das joias da
vigilância high-tech e da segurança de
big data.^18 Smartphones podem ser
submetidos a verificação a qualquer
momento nos postos de controle poli-
cial e nos diversos checkpoints monta-
dos ao longo das estradas. O extenso
sistema de vigilância por vídeo com
reconhecimento facial foi aprimorado.
A maioria dos uigures teve de entregar
seu passaporte, reduzindo a zero as es-
peranças de quem sonhava em fugir
para o exterior.
Para o poder chinês, a questão não
é mais monitorar a sociedade e punir
quem comete irregularidades. A coleta
de dados por meio da Plataforma Inte-
grada de Operação Conjunta, combi-
nada com o estudo de comportamen-
tos “incomuns”, tem o objetivo de
antecipar e classificar os indivíduos de
acordo com seu nível de lealdade e do
risco de segurança que representam.
Entre os numerosos critérios de identi-
ficação, figura a estadia em um dos 26
países “de risco”.^19 Falar com estrangei-
ros ou com pessoas que tenham ido
para o exterior, baixar o aplicativo de
comunicação proibido WhatsApp, ter
barba, não beber álcool, não fumar, co-
mer alimentos halal , guardar o Rama-
dã, não comer carne de porco, querer
dar aos filhos nomes muçulmanos
considerados subversivos, como o do
profeta: são muitos os sinais suspeitos.
Universitários renomados, artistas
e até atletas famosos desapareceram
de repente – possivelmente internados
- ou foram postos em prisão domici-
liar. Nos últimos meses, condenações
às vezes muito pesadas foram executa-
das. Por exemplo, o ex-diretor do Escri-
tório de Supervisão Educacional do
Xinjiang e o ex-reitor da Universidade
do Xinjiang foram condenados à morte
por “tendências separatistas”. Após ser
preso em 2014, o economista e escritor
Ilham Tohti, uma das últimas figuras
críticas dos círculos intelectuais uigu-
res, foi condenado à prisão perpétua.
As autoridades celebram a redução
da violência nos últimos meses. Mas,
mesmo na China, muitos observado-
res estão preocupados – embora não
ousem dizê-lo publicamente – com os
níveis de frustração gerados por essas
políticas a longo prazo. Dirigentes lo-
cais, imãs ou intelectuais que ainda
querem aparar as arestas já não têm
recursos para isso. A cegueira do Esta-
do ao crescimento das tensões prepara
o caminho para novas explosões de
violência.
*Rémi Castets é doutor no Instituto de Estu-
dos Políticos (IEP) de Paris e diretor do De-
partamento de Estudos Chineses da Univer-
sidade Bordeaux Montaigne.
Tais medidas têm
uma dimensão
intrusiva :
foi proibido ter a barba
considerada “anormal”
e usar o véu em locais
públicos...