O ÚLTIMO NAVIO NEGREIRO 57
De manhã, o grupo desalentado atravessou a
lagoa com água pelo pescoço até chegar à praia,
de onde se procedeu ao transporte em canoas até
ao Clotilda, ultrapassando a rebentação perigosa
e, por vezes, mortífera. Aquilo que aconteceu de-
pois atormentá-los-ia para sempre. Foram obri-
gados a despir a roupa. A nudez total dos afri-
canos era uma regra do tráfico negreiro, oficial-
mente imposta (embora muito ineficazmente)
para manter a higiene. Muitos anos mais tarde,
os derradeiros sobreviventes do Clotilda ainda
se mostravam indignados ao recordarem a hu-
milhação de serem apelidados de selvagens nus
pelos norte-americanos, os mesmos que acredi-
tavam que a nudez era “africana”.
Antes de concluir a transferência, Foster avis-
tou navios a vapor no horizonte. Receoso de ser
capturado, fez-se à vela, deixando 15 pessoas na
praia. Durante os primeiros 13 dias passados no
mar, todos os cativos permaneceram fechados
no porão. Décadas mais tarde, em 1906, quando
Abache (Clara Turner) falou da imundície, da es-
curidão, do calor, das correntes e da sede a um
redactor da revista “Harper’s”, “os seus olhos ar-
diam, com a alma inexpressivamente atormenta-
da por essa recordação”.
O desespero, a agonia e o horror eram agravados
no caso dos pais que se sentiam impotentes, inca-
pazes de aliviar o medo e o sofrimento dos filhos.
Uma mulher, mais tarde conhecida como Gracie,
levava quatro filhas a bordo: a mais nova, Matilda,
tinha cerca de 2 anos de idade. A falta de água era
uma tortura e as refeições (melaço e papas) não
ajudavam. Os alimentos açucarados intensifica-
vam a sua sede. “Um gole” duas vezes por dia era
tudo aquilo a que tinham direito e a água sabia a
vinagre. A chuva que apanhavam com a boca e as
mãos oferecia-lhes alívio passageiro. Registaram-
-se doenças e duas pessoas morreram.
Os navios negreiros eram lugares de miséria
indescritível. A solidariedade era fundamental
e aqueles que sofreram juntos forjaram relações
para toda a vida, por vezes prolongadas por várias
gerações, excepto se novamente separadas. A bor-
do do Clotilda, ao longo de um mês e meio, nasceu
uma comunidade deste tipo.
OS 110 HOMENS, mulheres e crianças embarca-
dos a bordo do Clotilda em Maio de 1860 eram
oriundos de Bantè, Daomé, Kebbi, Atakora e de
outras regiões do Benin e da Nigéria. Entre eles
havia pessoas pertencentes aos grupos étnicos
yoruba, ixa, dendi, nupe e fon.
Alguns praticavam o comércio de longa distância,
provavelmente transportando sal, cobre e tecidos.
Talvez produzissem ferro. Outros poderão ter tecido
panos, colhido inhame e produzido óleo de palma.
Algumas mulheres casaram-se e tiveram filhos.
Trabalharam provavelmente como agricultoras ou
vendedoras no mercado.
Um dos homens, Kupollee, tinha uma pequena
argola em cada orelha, o que significava que fora
iniciado na religião dos yoruba. Ossa Keeby era
oriundo de Kebbi, na Nigéria, um reino famoso
pelos seus pescadores profissionais. À semelhan-
ça de Kossola, de 19 anos de idade (mais tarde co-
nhecido como Cudjo Lewis), muitos tinham sido
vítimas de um ataque lançado pelo reino esclava-
gista de Daomé. Kossola afirmou provir de gen-
te modesta, mas o seu avô fora oficial de um rei
bantè. Uma rapariga chamada Kêhounco (Lottie
Dennison) foi raptada, tal como muitas outras. As
suas viagens forçadas terminaram numa prisão
para escravos em Ouidah.
No meio do horror e da miséria, os cativos en-
contraram apoio e solidariedade, até os esclava-
gistas estrangeiros desfazerem irreparavelmen-
te a sua recém-criada comunidade. Segundo en-
trevistas concedidas aos jornais e relatos orais
dos sobreviventes ao longo dos anos, descritos
em pormenor no meu livro “Dreams of Africa in
Alabama: The Slave Ship Clotilda and the Story
of the Last Africans Brought to America”, quan-
do Foster, comandante do Clotilda, chegou ao
local, os futuros tripulantes receberam instru-
ções para formar círculos de dez.
Depois de lhes inspeccionar a pele, os dentes,
as mãos, os pés, as pernas e os braços, ele selec-
cionou 125 indivíduos. Ao entardecer, foi-lhes
dito que partiriam no dia seguinte. Muitos pas-
saram a noite a chorar. Não faziam ideia do que
os aguardava e não queriam ser separados das
pessoas que amavam.
VIAGEM SEM REGRESSO
CAPÍTULO 2
TEXTO DE SYLVIANE DIOUF