O Estado de São Paulo (2020-03-04)

(Antfer) #1

Caderno 2


Leandro Nunes


Misturar realidade e invenção


sempre foi o negócio de Tiago


Rodrigues. Quando o diretor


português olhou para Claudia


Vidal, o ponto do Teatro Nacio-


nal D. Maria II, de Lisboa, ele


viu nela um espetáculo inteiro.


O ponto, um ofício quase extin-


to no mundo, é o trabalho de


“soprar” as falas para os atores


que se esquecem do texto. “A


sensação é de que ela era um ser


mitológico, um dinossauro”,


diz Rodrigues, em entrevista ao


Estado, por telefone.


Fruto desse encontro, o espe-


táculo Sopro estreia na 7.ª edi-


ção da Mostra Internacional de


Teatro de São Paulo (MITsp),


que vai de 5 a 15 de março. Em


cena, um conjunto de atores tra-


balha arduamente com outro ti-


me de “sopradores” para trazer


clássicos da dramaturgia, de


Chekhov e Racine a Molière. A


peça pode ser vista nos dias 13,


14 e 15, no Teatro do Sesi. “Eu


estava ensaiando outro espetá-


culo quando me deparei com o


trabalho de Claudia, que atua co-


mo ponto há 30 anos. Além dela,


só há outro profissional em Por-


tugal. Quando percebemos, is-


so muda uma sociedade.”


Rodrigues estará em São Pau-


lo em dose dupla. Seu apreço


pela memória se estende para


By Heart, também na programa-


ção da MITsp, nos dias 10, 11 e
12, no Teatro Faap. A peça é um
desafio ao público. “Convido
dez pessoas para testarem sua
memória ao decorar trechos
de autores como William
Shakespeare, Boris Pasternak,
Ray Bradbury e George Stei-
ner”, conta.
A inspiração para o trabalho
vem da relação do diretor com a
avó, Cândida. A anciã era uma
cozinheira e leitora de carteiri-
nha. Com os livros recebidos de
presente dos netos, ela costuma-
va pôr a mente para trabalhar de-
corando trechos. “Enquanto fa-
lamos com o público, vou relem-
brando dessa relação com ela.”
A incursão criativa de Rodri-
gues tem trajetória. Antes de So-
pro e By Heart, o diretor fez expe-
riências radicais como passar 14
horas por dia como aprendiz de
uma cozinha três estrelas do
Guia Michelin. Dessa vivência
nasceu a peça O Que Se Leva Des-
sa Vida. “Queríamos falar sobre
comida e, como analogia, o tea-
tro. A comida é criação, a partir
de muita pesquisa e esforço.”
Na trama, Rodrigues e o ator
Gonçalo Waddington são do-
nos de um restaurante chama-

do Cópia e estão decididos a
criar um prato mais que premia-
do. Na estreia, o cenário realis-
ta levou uma alta cozinha para o
palco. “Como o teatro, a comi-
da é feita para alguém que vai
comer, e é tão efêmera quanto o
trabalho apresentado no pal-
co”, explica.
Filho de jornalista, o diretor
atuou por certo tempo na im-
prensa e é de lá que veio a inspira-
ção para Se Uma Janela Se Abris-
se. Na forma de um noticiário ao
vivo, um grupo de atores recria
novas vozes para coberturas te-
levisivas. “Eles são como pianis-
tas de cinema mudo. É uma for-
ma de pensar o teatro em sua for-
ça transgressora, que vai além
do discurso político.” Para ele, a
linguagem tradicional da comu-
nicação ganhou um caminho al-
ternativo no espetáculo. “O pen-
samento na cena pode avançar,
tomar outras vias e surpreen-
der, criando reflexão.”
O projeto manifestou tanto
interesse que o apresentador
da TV estatal portuguesa João
Adelino Faria, um dos mais em-
blemáticos e tradicionais, to-
pou participar de gravações pa-
ra a peça. “Algumas cenas fo-

ram gravadas para compor esse
nosso telejornal apresentado
ao vivo.”
Em entrevista ao Estado, o
diretor artístico da MITsp, An-
tonio Araújo, ressalta que Ro-
drigues já estava na mira da
mostra nas edições anteriores.
“Ele concebe trabalhos que
usam a memória como força, na
superação de opressões políti-
cas e sociais.”

Relevante. A 7.ª edição da Mos-
tra Internacional segue uma
grade não tão diferente do ano
passado. O que não muda, infe-
lizmente, é a “cultura do último
minuto”, segundo Araújo – ou
seja, produzir o evento em cima
da hora. Para ele, algo que pode
“matar a MITsp”. De acordo
com diretor artístico, a Mostra
já é capaz de figurar como festi-
val relevante no mapa das artes
cênicas na América do Sul, mas
não se compara ao planejamen-
to de suas irmãs, o Santiago a
Mil, no Chile, e o Festival Inter-
nacional de Buenos Aires, na Ar-
gentina. “Apesar do tamanho,
eles conseguem antecipar dois,
três anos, o que pode nos ajudar
com uma curadoria possível,

sem tantos imprevistos.”
Nesta edição, as 13 produ-
ções, vindas de Portugal, Reino
Unido, França, Alemanha, Suí-
ça, Ruanda, Chile e Índia, vão
compartilhar espaço com a 3.ª
edição da MITbr, uma seleção
nacional com doze espetácu-
los, de Fortaleza, Paraná, Piauí,
Amazonas, São Paulo, Bahia,
Pernambuco e Minas. A maio-
ria é inédita na cidade.
Entre os destaques, estão a pe-
ça Stabat Mater, da atriz e direto-
ra Janaina Leite – uma das pro-
duções mais contundentes que
estrearam na capital no ano pas-
sado; e Gota D’Água (Preta),
que, a partir da obra de Chico
Buarque e Paulo Pontes, é revisi-
tada pelo diretor Jé Oliveira
com a tragédia de Medeia sob
uma perspectiva racial.
Neste ano, também estreia a
programação off do FarOFFa –
Circuito Paralelo de Artes Cêni-
cas, com 30 espetáculos nacio-
nais em apresentações na Ofici-
na Cultural Oswald de Andrade,
no Teatro Pequeno Ato e no Es-
paço 28, do grupo 28 Patas.

‘ZeroZeroZero’


estreia sexta


Narcossérie da


Amazon retrata o


mercado de cocaína


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ENTREVISTA


Serviço


DESTAQUES


l Multidão (França)
Na peça da diretora Gisèle Vien-
ne, 15 jovens vivem suas histó-
rias enquanto participam de uma
festa de música techno

l Contos Imorais 1:
Casa Mãe (França)
Vestida como uma deusa grega
futurista, a atriz Phia Ménard
cria um debate sobre o Plano
Marshall e a reconstrução da Eu-
ropa pós-Segunda-Guerra

l Tu Amarás (Chile)
A comédia irônica criada pelo
Grupo Bonobo é centrada na
ideia de violência cometida em
sociedades democráticas

l O Pedido (Reino Unido)
Parceria entre o diretor Mark
Maughan e o dramaturgo Tim
Cowburry explora os problemas
de um asilo para refugiados

l Tenha Cuidado (Índia)
Solo de Mallika Taneja faz contra-
ponto entre a maneira como as
mulheres indianas se vestem e a
violência praticada contra elas

l Farm Fatale
(Alemanha/ França)
Em uma estranha fazenda, a pe-
ça de Philippe Qesne evoca a vi-
da rural em um mundo distópico.
Nela, cinco espantalhos tentam
relembrar o passado em um mun-
do sem pessoas

Desafio.
‘By Heart’
une jovens
e literatura

FILIPE FERREIRA

Tiago Rodrigues, DIRETOR


‘Memorizar é uma forma de resistência’


lO apreço pela memória apare-


ce em muitos de seus trabalhos.


É uma forma de lutar contra o


tempo?


O ato de memorizar em By


Heart é uma forma de resistên-


cia, contra qualquer força tota-


litária. Minha avó inspirou es-


te trabalho e, quando ficou


cega, buscou decorar trechos


para manter o amor que tinha


pela literatura.


l Em Sopro, há certa semelhan-


ça. Além de ser uma homena-


gem ao teatro, certo?


Sim, nessa peça, a profissão


de ponto ganha essa impor-


tância além do tempo. Em
Portugal, há apenas dois pro-
fissionais. Na Europa, foram
quase extintos. No Brasil,
acredito que também não te-
nha nenhum.

lVocê deve estrear novo traba-
lho ainda este ano, certo? Qual
o tema?
O espetáculo ainda não foi es-
crito, mas deve estrear em
maio, em Viena. A peça vai
contar a história de uma famí-
lia que está a decidir tomar
um caminho não democrático
para defender a democracia.
Um exemplo na História é a

luta armada da Revolução
Francesa, que usou da violên-
cia para transformar a realida-
de de seu país.

l É um assunto debatido em to-
do o mundo. Há alguma inspira-
ção?
É curioso saber que ainda nes-
ta semana estarei no Brasil.
Estamos estudando muitos
discursos populistas de diver-
sos países, ouvindo falas de
presidentes que tomam deci-
sões autocráticas para sabotar
a democracia. É aqui em Por-
tugal, no Brasil, nos EUA. Eles
são muitos. / L.N.

7ª MOSTRA INTERNACIONAL DE
TEATRO
VÁRIOS LOCAIS. 5 A 15/3. R$ 20/R$ 40.
INFORMAÇÕES: MITSP.ORG/2020

Ofício. Profissional que ‘sopra’ texto aos atores inspirou peça que homenageia o teatro


MAGDA BIZARRO

Teatro. O diretor português Tiago Rodrigues estreia na Mostra


Internacional com peças que desafiam a natureza fugaz do palco


Memória em extinção


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C1 QUARTA-FEIRA, 4 DE MARÇO DE 2020 ANO XXXIV – Nº 11583 O ESTADO DE S. PAULO

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