Valor - Eu & Fim de Semana (2020-03-06)

(Antfer) #1

28 |Valor|Sexta-feira,6demarçode2020


ce oprópriopai”, eos direitosmusicais.“Cismei
que era importante,essencial,utilizarmúsicas
que faziamparteda minhavida.Um inferno.
Porque ali erammúsicasque vão de Thelonious
Monkaté‘[Sonhode]Ícaro’, doBiafra.”
Um desafiofoi voltar, muitasdécadasdepois,
a espaçosondetrabalhou.“Umaou outravez
encontramosuma pessoa50 anos depois.Éum
perigofazerisso,masnointeriornãotanto.Sabe
por quê?Lá você não vai entrarem colisão, em
choque,porqueas coisasnão mudaramna sua
essência.” Esseé,paraMaureen,umdossegredos
deseutrabalho:“Meperguntamoqueuneosli-
vros[defotos]queeufaço.Équesãopessoas,são
regiõesqueaindanãoperderamsuaessência”.
É essa intuiçãode desvelarum Brasildesco-
nhecidoque lhe permitiumergulharnos anos
1960 e1970 em regiõesaindapoucoexplora-
das. Para ela, sua identidadede mulherestran-
geirainfluíapouconas relaçõesque estabelecia.
Oimportanteeraessemergulhosolitário,crian-
doproximidadecomouniversoqueretratava.
Avolta ao passadocom ofilme foi também
uma possibilidadede redescobrircoisasque fi-
caramesquecidas.“Estourevendofotografias
queeufiznosanos60equeeupintavacomeco-
line, tintassemitransparentes.Fiqueimeioen-
cantada.” Percebeutambémnesseprocessoa
fortepresençade seus conhecimentosde artes
plásticasna formade fotografar:“É clara,em to-
dacomposição,aideiadaluzesombra”.
Mas ela não considerasua obra uma novida-
de no cenáriobrasileiro.Fala com generosidade
de PierreVerger (1902-1996)e MarcelGauthe-
rot (1910-1996),que consideraseus precurso-
res. “Meiageraçãoantesda Claudia(Andujar)e
eu. Erammaravilhosos.De certamaneira,Gau-
therotera aindamelhor, porqueele viveuquan-
do as tradiçõeseramfeitaspara as própriaspes-
soas. Por exemplo, os bumbas,os guerreiros,os
brincantespopulareseramfeitospor eles para
eles.Hoje,tendemaserumevento.”
Perguntose essastradiçõesestãose perden-
do.Ela pondera:as tradiçõesse “renovamaté
não mais renovar.Você vê o samba:hoje é uma
espetacularizaçãotremenda.Antesnão era as-
sim”.“No mundointeiroé omundodo espetá-
culo.Agora,você não podedeixarosaudosismo
excluirocenáriode eventopopular.Por exem-
plo, aindaseguios guerreirosde Alagoas,lá no
campo,umasdezpessoaseeu,indodelugarpa-
ra lugar. Eles faziamos reisados.Mas, na última
vez que fiz isso,já aprefeituratinhaum lugar.
Não dá para criticar. Éumoutro mundo”, diz.
“Por outro lado, os blocosde rua se renovaram.
SãoPaulotemummontedeblocos.Euachoque
opovotemasuaforça.Nãosedeixadestruir.”
Em seu vastotrabalho,chamaatençãoarela-
ção com aliteratura.Muitosforamos autores
com quemestabeleceuum diálogocriativo:Eu-
clidesdaCunha,MáriodeAndrade,JoãoGuima-

rães Rosa,João Cabralde MeloNeto, JorgeAma-
do,ArianoSuassuna...Elaconsideraasobraslite-
ráriasbasesfortesparaa aproximaçãocom a
cultura,masissonãosedeuapartirdeumproje-
to tão claro:“Eramváriascausas.O negóciodos
caranguejeiroscomoJoãoCabralveiodepoisde
ter feito uma reportagemsobreos homensde
caranguejocomAudálioDantas.Anosdepoiseu
associeiissoaolivro‘CãoSemPlumas’”.
Ocaminhopercorridono livro“O Turista
Aprendiz”, de Mário de Andrade, foi menos
um encontrocom o universo retratadopelo
escritoremais um motepara adentrar a Ama-
zônia:“Nãoeratantoencontro,porqueagente
filmoudo rio paraacosta,porqueachamos
um barco que andava aoito metros da costa,
raríssimo.Entãofilmamosassim”.
JáGuimarãesRosafoiumadescoberta.Quan-
do seu amigoJosé OlympioBorgeslhe deu o li-
vro, não sabiaao certose ela compreenderiao
universomíticode Guimarães.Ela não só com-
preendeucomose apaixonou.Fez questãode
conhecerGuimarães,quelheajudouadesenhar
opercursoquedepoiselafariafotografando.
Hoje,diz,asviagensnãopoderiamserrepe-
tidasda formacomoforamfeitas na época.
“Eramviagens prazerosas. Porqueeramde
ônibus. Mas era a época em que, no ônibus,
vocêabriaajanelaenãotinhatelevisão.Então
era ótimo. Agorair de ônibuséterrível, por-
que tem oar-condicionado, você não abreja-
nela, não respirabem etem televisão. Era pre-
cário,masesseeraobomdacoisa.”
Osucessodessasempreitadasera absoluto,
pois elas abriamportasde um Brasilaté então
poucoexplorado,que naquelaépocachamava
atençãodosqueviviamnacidade.Osegredopa-
ra Maureenera que “a precariedadedas nossas
viagensera nossafacilidade.Por quê?Quando
voltávamosao conforto,euemeu marido,tí-
nhamosumagaleriade arte popular, voltáva-
mos com as peças,com as fotos,todo mundose
interessava. Na revistas,por exemplo, na ‘Reali-
dade’,‘QuatroRodas’...porqueeraonovo”.
Mas o que seriahojea descoberta?Nossa
viajanteaqui hesita.Respirae começaa pensar
no mundoatual:“Agora,o importanteé achar
o desconhecido.Seria um relacionamentoda
pessoacom esse mundoem mudançarápida”.
Um mundoondeas pessoasviverãomuito
mais e ondeo fazermanualdesaparecerá.Essas
mudanças,segundoMaureen,é arazão para o
Brexite para as reformasprevidenciárias:“Tu-
do isso não é problemáticade um país. Essa es-
péciede revolta,essa espéciede severidade,de
direitismo, isso são consequênciasdessemun-
do que está realmenteassustandopelasmu-
dançasincríveis”.O maiorrisco para ela está no
“homemrenegado”, vivendo“já meiomorto”,
sem possibilidadesde ser incorporado.
O Brasilatuala assusta,comoaassustao

Concentraçãoda EstaçãoPrimeira da Mangueira, em 2015, no Rio


Cena de “Xingu/Terra”(1981), fruto de parceria comOrlando Villas-Bôas


Catadorde caranguejoàs margensdo rio Paraíba do Norte,em 1968


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