Sexta-feira,6demarçode2020|Valor| 29mundo. Os descontentamentoscrescem,assim
comoas diferençasentreos que têm e os que
não têm nada.Se percebeomundoem eferves-
cência,o conhecimentode quemviveuquase
um séculoa faz matizarum poucoa urgência
contemporâneaem conseguirrespostaspara as
crisesque se multiplicam:“É aenésimavez, em
proporçõesdiferentes,que o mundopassapor
essesmomentos.Eeucultivoessenegóciodever
documentárioshistóricos,porquete põe mais
na realidadedas coisas,porqueàs vezesagente
idealizaomundocomoera”.
Maureen lembra-seentão de seu país de
origem, aInglaterra. Pega comoexemploa
mãe de Charles Chaplin, retratada na auto-
biografia do cineastaeator. Ali encontramos
uma misériaabsoluta:“A mãe de Carlitos en-
trava e saía de manicômios. Por quê? Por falta
de pão para comer. Umaloucura!”. Cita o tra-
balhodeBillBrandt,fotógrafoqueretratouas
minasdo Norte da Inglaterra no pós-guerra:
“A situaçãoqueessasfotosnosmostravamera
de misériaabsoluta, com casasde tijolos sem
janelasefamíliasmiseráveisvivendocompre-
cariedade”. Para ela, imagens comoessas fa-
zem com que relativizemos um poucoas ma-
zelasdopresente,semque,noentanto,esque-
çamosdoquehádenovoeterrível.
Éaartenovamentequedáachaveparaare-
flexãodeMaureen.Elalembra,parapensares-
te novomomento, de dois escritores: Aldous
Huxley, autorde “Admirável MundoNovo”,e
GeorgeOrwell e seu “1984”:“Essaspessoasjá
estavam prevendoeste mundo que está come-
çandorapidamente a mudar.Então,talveza
nossapequeniníssimamaneira de retratar,
documentar,sirva para tempos na frente(di-
zermos)‘Ah, mas então o mundoera assim!’”.
Paraela,umdospapéiscentraisdafotografiae
do audiovisualhoje étrabalhara memória,
“tentarjuntaropassadoquepodesurgirlenta-
mentedo olhar”. As imagenspodemser um
elementodeconexão,umdiálogoquepermite
àspessoas“seprepararemparaasmudanças”.
Na conversasobreseu vasto trabalho,lem-
bramosda importância de suas fotosno Xin-
gu, ao longo dos anos 1970e 1980,que resul-
tou também no filme “Xi ngu/Terra” (1981),
um dos primeiros que dirigiu. Esse trabalho
foi fruto de sua parceria e amizade com o ser-
tanista OrlandoVillas-Bôas, de quemfilmou
anosdepois,em2002,ofuneral,nacerimônia
Kuarup, realizadanoParqueIndígenadoXin-
gu,reservaqueeleajudouacriar.
Ao ser questionadasobreesse trabalho, ela
diz que não fala muitodo Xingu“porqueeu
achoqueé‘in falável’. Nãofalo.Masomomentoé
tãograve,égravíssimo,e,detodasascoisasquea
gentepodeconsiderarnegativasou perigosas,é
o maisperigoso, porqueo restose podereto-
mar”.Elaserefereaosataquesaomeioambiente
eàcrescenteinvasãoaos territóriosindígenas.
Lembrade uma frase de Villas-Bôasno iníciodo
filme,quandodizqueaessênciadoíndioéater-
ra,baseparaaexistênciadesuacultura.
“A essênciaé a terra. Então perder aterra é
perderamaneiradevivercomosevive,eaívai
escadaabaixo.Então eu achoque émais peri-
goso. Veremos!” Quandose aproximou do
sertanista, ele lhe deu umasugestão: “Não
precisa mostraro índiodebaixo da ponte,
mostreele na forçada tradição paraas pes-
soasveremaperdaqueissoserá,seacabar,ve-
rem o pontode equilíbrio que essas socieda-
desaolongodotemposouberamcriar.”
Outropontoque aentristeceé oPavilhãoda
Criatividadedo Memorialda AméricaLatina,
emSãoPaulo,queelaajudouaconceber,apedi-
do de seu amigoDarcyRibeiro:“O Memorialda
AméricaLatinatem umaparteamargapara
mim,euesperoqueonovodiretorestejaatento,
porque,nos últimosanos,acabou-sepratica-
mente.Foiumapena.Aqueledeslumbre,aquela
coerência,aquilotudojánãoexiste”.
Apesardas coisas ruins que vê no presente,
Maureen não desanimoudo Brasil. Ao con-
trário, ela continua vendo com olhar genero-
so opaís que escolheu para viver,criticapou-
co e vê muitos pontos fortes. Ogrande defei-
to paraela é justamenteo descasocomo
passado, que se reflete na forma descuidada
com que a memória e opatrimônio cultural
do país são tratados.
Aproximidadedos90anosnãoadesanima
e, se há uma certeza, éque ela pretende seguir
trabalhando: “Estou menosem enosqueren-
do viajar emais emais querendofazer.Coisas
que possofazer sem viajar.Por exemplo,esse
negóciodafotopintada”.
Questionose ela não pretendeviajarmais.
Nestemomento,elalembradeArianoSuassuna
e do livro que ele escreveuem sua homenagem,
“Maurinae a LanternaMágica”. Diz que preten-
de fazer um trabalhoem cima do livro e do uni-
versoculturaldaobradomestreparaibano,bus-
candoinspiraçãonos seus escritospara sua pes-
quisaimagética:“Isso é uma aventura.Temque
ser feitoassimcom umaplasticidade,para as
pessoascompreenderem.As últimasobrasde
Suassunasãocomplicadasenuncaforampubli-
cadas.Entãoestouesperandofazer isso”. Se lite-
raturanão éuma coincidênciano trabalhoda
fotógrafa,a palavra foi determinantepara sua
passagemdafotografiaparaousodovídeo:“Era
palavrasobretudo,apalavrafaladasobretudo”.
Ela se apropria commuitanaturalidade
das novastecnologiasegosta de se utilizar
delasem seu trabalho. A curiosidadecom o
novonão arrefeceu comotempo.Quando
pergunto sobreo futuro, Maureen afirma
que pretende continuar até ondeconseguir,
pois o trabalho a renova, é sua fórmulamági-Retrato de ManuelNardi (1966), que inspirou conto de GuimarãesRosaca para estendera vida.
“Até que eu tenhaapossibilidadede fazer,
euresistobem.Francamente,euachoquelido
bemcom esse mundo novo,dentrodas mi-
nhascondições. Porqueeu vivo nele, não me
queixodemais. Leio sobreele naquilo que eu
sei compreender”, diz Maureen.“Mas,no mo-
mentoem que eu não soubertraduzir,diga-
mos,a minha realidade materialmenteem
outra, que seja um pedaço de papel, que seja
qualquer coisa... até lá eu achoque estou
bem”,afirma. “Quandovocêpensaque, por
exemplo, em 1945,40 anos já era terceiraida-
de...(Oscar)Niemeyer tinha 105 anos... Não
seicomoelesesentianosúltimos5anos,nun-
caperguntei.Maseleresistiu,não?”“Equivalências- AprenderVivendo”DVD
(IMS,R$ 44,90); sessões do filmenos domingos
de março,às 14h; exposição“Agora ou Nunca-
Devolução”em cartazaté 5/4, no Instituto
Moreira Sallesde SP (av. Paulista,2.424).
Leia maisna pág. 33 ■MAUREENBISILLIAT/ACERVO INSTITUTO MOREIRA SALLESCanal Unico! O Jornaleiro