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C6 Caderno 2 QUARTA-FEIRA, 11 DE MARÇO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO
LEANDRO
KARNAL
L
ogo após ter sido criado, o pri-
meiro casal da humanidade
recebeu o controle da nature-
za. Assim afirma o final do capítulo
inicial do Gênesis (Gn 1, 28-30). Do-
minar animais e plantas e multipli-
car-se sobre a terra: ordens divinas
dadas a Adão e Eva. Fundamentalis-
tas religiosos dos EUA já usaram
esses trechos para justificar caça a
ursos, por exemplo.
Nossa vaidade de donos do mun-
do só cresceu. Ao impulso religio-
so, vem somar-se o orgulho da téc-
nica crescente. A vaidade antropo-
cêntrica não conhece limites. A na-
tureza, no entanto, dá respostas
distintas. A fantasia do orgulho so-
fre, com frequência, choque de rea-
lidade.
Tendo vivido uma chuva devasta-
dora em São Paulo no dia 10 de feve-
reiro, pensei nos elementos natu-
rais e sua força. Maior cidade da
América do Sul, a metrópole reluzen-
te do Brasil foi detida pela água insípi-
da, inodora, incolor e... fatal. Carros
deslumbrantes, túneis imponentes,
avenidas vastas: tudo parado e afoga-
do em poucas horas de chuva.
Pior do que o vivido em São Paulo
foi a nevasca de 11 a 14 de março de
1888 (Great Blizzard of 1888). Parali-
sou Nova York e grande parte da Cos-
ta Leste dos EUA. Ventos fortes e neve
acumulada passando de um metro em
muitos lugares. Encanamentos estou-
rados, trens parados, desabastecimen-
to geral e centenas de mortos. O Gran-
de Furacão Branco (como a imprensa
o denominou) fustigou áreas densa-
mente povoadas. O gelo permitiu que
muitas pessoas passassem a pé sobre
o rio do Brooklyn para Manhattan. In-
cidente tragicômico: um senhor segu-
rou-se ao poste para evitar ser carrega-
do pelo vento. Sem querer, aproxi-
mou demais a boca do metal e ficou
grudado. Afastou-se com dor e deixou
no poste seus dentes postiços. No dia
seguinte, voltou ao local e a dentadura
lá estava, congelada.
Trago à memória o incidente de
1908, em Tunguska. Um objeto celes-
te caiu na Sibéria e devastou mais de
dois mil km² de florestas. Se tivesse
caído em uma grande cidade, estaría-
mos falando do maior desastre da histó-
ria. Como reagir a eventos dessa magni-
tude, como a explosão dos vulcões
Krakatoa (1883) e Santorini (há mais de
3,6 mil anos) e do Vesúvio que soterrou
várias cidades no ano de 79 d.C.? Há
resposta a violentos terremotos e tsu-
namis? Sim, países avançados como o
Japão podem diminuir muito os danos
dos desastres naturais; porém, como
vimos recentemente, a mesma tecno-
logia que ajuda a evitar destruição
maior edifica reatores atômicos que
multiplicam problemas (Fukushima,
2011). Toda a sociedade californiana
se prepara, há anos, para o Big One, o
terremoto apocalíptico que mostrará
todo o potencial devastador da falha
de Santo André.
Falamos de chuvas, erupções, nevas-
cas, terremotos e tsunamis. Menos fa-
mosas, as mudanças climáticas de lon-
go prazo são, igualmente, impactantes.
A Idade Moderna, por exemplo (sécu-
los 15 ao 18), foi acompanhada de um
resfriamento parcial, uma pequena Ida-
de do Gelo, que tornou áreas do norte
europeu inadequadas para a agricultu-
ra, aumentando a fome em longos e
crescentes invernos. Os anéis de árvo-
res centenárias, pedaços profundos de
gelo e de sedimentos, marcas das gelei-
ras nas rochas e outros registros permi-
tem detectar aumentos de chuvas e de
variações térmicas. Existe uma “longa
duração” da natureza que atua sobre a
história e foi indicada pelo historiador
Fernand Braudel.
Eis os orgulhosos humanos reduzi-
dos a marionetes irrelevantes quando
fatos naturais se pronunciam. Ganha-
mos o controle do Éden. Ninguém ima-
ginava que fora daquele lugar seguro
haveria tantas falhas geológicas e tanta
chuva. Nossa inocência se foi. As nevas-
cas impedem a nudez primitiva.
Há uma curiosa vaidade em meio aos
desastres. Quando o mundo foi sub-
merso em águas na narrativa bíblica,
teria sido por causa do comportamen-
to humano. Sim, salvaram-se animais
na Arca. Alguns... Porém, milhões de
outros foram afogados como castigo
pela ... maldade humana. Hoje que
os cientistas traçam argumentos ine-
quívocos sobre a responsabilidade
da nossa civilização sobre o aqueci-
mento global. De novo, agora por
causas verificáveis e demonstráveis,
tudo vai por água abaixo pela respon-
sabilidade do Homo Sapiens. Toda
vez que o mundo acaba ou ameaça
acabar, é culpa nossa. Desta vez, sa-
bemos, é mesmo culpa nossa.
Vencemos rios, fizemos represas,
eliminamos males, rasgamos monta-
nhas e pisamos na Lua. Diante de
uma onda gigantesca, de uma terra
agitada ou de um vulcão explodin-
do, exibimos, em pleno mundo tec-
nológico, reações semelhantes aos
que os habitantes de Herculano,
Pompeia e Estábia demonstraram
naquele agosto fatal. Temos inter-
net e serviços de celulares. Chega o
temporal, a água sobe, e ficamos
bem parados em casa, olhando a
água levar tudo, assustados, tão im-
potentes como nosso ancestral no
fundo de uma caverna escura que
observava uma força que o excedia.
Diferentemente do homem do Paleo-
lítico, podemos ver imagens em tem-
po real do desastre crescendo. As-
sim, morremos bem mais informa-
dos. É preciso ter esperança e buscar
um lugar alto, por vezes.
Retrato solidário
de comunidade
curitibana
H
á muitas maneiras de filmar a perife-
ria. Nóis por Nóis, de Aly Muritiba e
Jandir Santin, escolhe sua posição a
partir do título. Busca uma visão tão interna
quanto possível da vida de jovens morado-
res de Vila Sabará, comunidade de Curitiba.
Tenta captar o acento, a prosódia e a visão
de mundo de garotos e garotas que procu-
ram sobreviver e realizar seus sonhos em
ambiente pouco propício.
Para buscar esse ponto de vista “interno”
se valem da imersão na vida da comunidade
e escalam um elenco em sua maioria com-
posto pelos próprios jovens retratados, co-
mo Ma Ry (Mari, aspirante a rapper), Mai-
con Douglas (Gui), Matheus Correa (Café),
Felipe Shat (Shat) e Stephany Fernandes
(Jana). Mesclam-se a esse elenco jovem al-
guns atores profissionais e aí está a receita
para um filme que tem como principal trun-
fo a naturalidade.
Nóis por Nóis é obra do cotidiano e daí
vem sua força. Dele fazem parte elementos
como violência policial, tráfico, bailes funk,
rivalidades entre grupos, namoros. Um jo-
vem que “filma” a ação policial em seu celu-
lar como forma de proteção. Um baile termi-
na com uma briga por causa de ciúmes. Sur-
ge uma gravidez indesejada. Há um trafican-
te (Nando, vivido por Luiz Bertazzo), e uma
dupla abusiva de policiais, cabo Rocha (Otá-
vio Linhares) e o soldado Santos (Marcos
Tonial), estes atores profissionais.
A filmagem é bastante despojada, como a
expressar sem rodeios a situação particular
desse estrato da população. O olhar evita o
paternalismo, embora seja obviamente soli-
dário com os jovens. Não se limita a apresen-
tar o retrato seco de uma dimensão tão am-
pla da realidade brasileira, mas sugere como
estratégias de sobrevivência podem ser pos-
tas em prática. Ainda assim a marca da tragé-
dia parece inevitável num ambiente fruto
da obscena desigualdade social do País.
Cinema. Para Aly
Muritiba, o olhar
sobre a periferia de
‘Nóis por Nóis’ ficou
mais relevante
no Brasil atual
Tempo de
violência
Luiz Carlos Merten
Aly Muritiba avalia que o ano e
meio decorrido desde a apre-
sentação de Nóis por Nóis na
mostra competitiva do Festival
do Rio, na Première Brasil, so-
mente tornou seu filme, realiza-
do em parceria com Jandir San-
tin, mais urgente e necessário.
“Gostaria de ter lançado antes,
mas não havia dinheiro. Houve
o processo eleitoral, decidido
num discurso de ódio, elege-
ram-se governadores partidá-
rios dessa mesma violência. O
resultado foi uma legitimação
da violência policial, e as maio-
res vítimas são os jovens negros
e pobres da periferia.”
Nóis por Nóis, que estreia ama-
nhã, não é apenas sobre a vio-
lência da polícia, portanto, do
Estado. É sobre a reação que
ela provoca. Termina sendo
um filme de impacto. O desfe-
cho, olha o spoiler, inscreve o
filme numa tendência que foi
importante no ano passado. A
revolta dos oprimidos, repre-
sentada por Parasita, Coringa,
Bacurau, Os Miseráveis.
Muritiba formou-se como his-
toriador, na USP. O curso deu-
lhe, como diz, “as ferramentas
para entender as formas de
opressão que, ao longo da histó-
ria, as classes dominantes exerce-
ram e ainda exercem sobre os
mais desfavorecidos da socieda-
de”. Formado, Muritiba foi ser
agente penitenciário. “E aí, nos
meus turnos de 12 ou 24 horas, eu
pude ver na prática a opressão
que havia começado a entender
como teoria. Estava no sistema
prisional quando resolvi cursar
outra faculdade, cinema. Hoje, o
que posso dizer é que a experiên-
cia de carcereiro alimenta meu
cinema, tanto faz que sejam os
documentários ou as ficções.”
Em seu longa anterior, Ferru-
gem, de 2018 – que estreou em
Sundance –, Muritiba já coloca-
ra o celular no centro da trama,
para denunciar o bullying digi-
tal e a cultura da vingança. A di-
ferença é que a história se passa-
va num ambiente de classe mé-
dia e, dessa vez, os jovens são da
periferia. Café, que organiza bai-
les de hip-hop, põe fé na câmera
do celular para denunciar as
abordagens abusivas da polícia.
“Isso aqui (o celular) é mais po-
tente que um oitão”, ele acha.
Decidido a filmar a periferia
que fornece, estatisticamente,
o elemento humano para o siste-
ma carcerário do qual foi agen-
te, Muritiba escolheu uma zona
violenta de Curitiba, a Vila Saba-
rá. Para escolher seus atores,
fez casting. Matheus Correa,
que faz Café, não tinha expe-
riência nenhuma com a câmera.
“As pessoas gostam de definir
como não atores, ou não profis-
sionais, mas eu prefiro dizer
que são atores naturais. O Ma-
theus é um exemplo. Saiu-se
tão bem que está seguindo car-
reira.” Ma Ry, que faz Mari, é
um assombro. Algumas das me-
lhores cenas do filme são diálo-
gos de rua entre Café e ela. “A
Ma Ry nunca tinha feito cine-
ma, mas tinha experiência de
participar de concursos de ri-
ma. Já sabia se posicionar, tinha
noção de câmera. Mas você tem
toda razão – ela é um bicho de
cinema. Todo esse elenco jo-
vem é muito bom. Durante to-
do o processo de edição, e reven-
do o filme, sempre me encanto
com as interações entre eles.”
Muita coisa mudou nesse ano
e meio – no próprio cinema.
Houve o caso de Os Miseráveis,
de Ladj Ly, que dividiu com Ba-
curau, de Kleber Mendonça Fi-
lho e Juliano Dornelles o prê-
mio do júri em Cannes e depois
foi indicado para o Oscar. Os Mi-
seráveis não tem exatamente o
celular, mas tem o drone com o
qual o garoto capta imagens da
violência policial e isso acirra
uma situação já potencialmente
explosiva. Os Miseráveis tem a ce-
na, no começo, da abordagem
no ponto de ônibus, quando o
policial ‘ariano’, o mais esquen-
tado do trio, intimida a garota.
Uma cena parecida, senão
igual, aumenta a voltagem de
Meu Nome É Bagdá, longa de Ca-
ru Alves de Souza que acaba de
ser premiado na mostra Genera-
tion 14Plus, na recente Berlina-
le. A garota andrógina integra
grupo de skate com meninos.
Sofre discriminação no grupo,
uma tentativa de assédio. Antes
disso, o policial, brutal, diz que,
se ela quer agir como homem,
no grupo, então vai revistá-la co-
mo homem, e a apalpa violenta-
mente nas partes íntimas. É
uma cena chocante, e na Berlina-
le provocou indignação.
O que isso prova é que Nóis
por Nóis não é um filme isolado,
mas se inscreve num quadro
que o diretor não hesita em defi-
nir como de luta. “O Brasil vi-
rou uma distopia, nem o mais
delirante dos roteiristas pode-
ria prever que isso iria ocorrer
no País. É uma coisa desanima-
dora, que poderia paralisar,
mas o que eu sinto é uma indig-
nação que renova minha ener-
gia. É preciso reagir a esse esta-
do de coisas. Eu reajo fazendo
filmes.” Sendo um filme sobre,
e contra, a arbitrariedade poli-
cial, Nóis por Nóis com certeza
vai provocar reações contrárias
da parcela que acredita que ban-
dido bom é bandido morto, mes-
mo que muitos jovens da perife-
ria, que sofrem a violência poli-
cial, não tenham vinculação
com a criminalidade.
As cenas com policiais são de
um realismo extremo. Eles es-
tão em cena com armas, unifor-
mes, carros, armas. Como um
filme desses, tão crítico, ga-
nhou ajuda da polícia para ser
feito? Muritiba esclarece: “Os
policiais do filme são atores. Ne-
nhum policial, naquelas aborda-
gens, se deixaria filmar. Eu mes-
mo faço o sargento. Todo esse
realismo que você destaca foi
obra da produção, que provi-
denciou todo o necessário”.
Essa conversa com o codire-
tor de Nóis por Nóis foi realizada
na tarde de terça, 10, durante
uma brecha que ele abriu na fil-
magem de O Caso Evandro para
falar com o Estado. “É o último
dia, e o ritmo do lado de cá está
bem intenso, mas a entrevista é
importante”, define Muritiba.
O novo longa é um documen-
tário para TV sobre uma histó-
ria real que deu origem ao júri
mais longo da história do Brasil
- foram 34 dias de julgamento.
Em 6 de abril de 1992, Evandro
Ramos Caetano, de 6 anos, desa-
pareceu. Cinco dias mais tarde,
o corpo foi encontrado num ma-
tagal, sem vários órgãos e com
os pés e as mãos amputados.
Duas mulheres, mãe e filha, fo-
ram levadas ao júri acusadas do
sequestro e morte de Evandro,
num ritual de magia negra. Fo-
ram inocentadas em 1998, mas
no ano seguinte o julgamento
foi anulado, sendo retomado so-
mente em 2011, dessa vez termi-
nando em condenação. O pod-
cast sobre o caso é um dos mais
baixados do Brasil, com 4 mi-
lhões de audições em 2019.
LEANDRO KARNAL ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS
E AOS DOMINGOS
A força superior
]
CRÍTICA: Luiz Zanin Oricchio
Diante de um temporal, ficamos
tão impotentes quanto nosso
ancestral no fundo da caverna
GRAFO
JJJ BOM
Realidade.
Jovens
buscam
realizar seus
sonhos em
ambiente
pouco
propício