de início pensava que os motores dos unimogues assustavam os animais que vêm
beber à margem mas se não nos aproximarmos demasiado não os inquietam, observam-
nos de banda, esquecem-nos e é tudo conforme não os assustam os crocodilos junto a
um tronco tombado ou uma família de mabecos mal cheirosos a trote, de orelhas tão
agudas quanto os focinhos, o capitão ligou um foco à bateria do segundo unimogue
avaliando as redondezas, demorando-se numa pacaça sozinha que nos fitava a mastigar,
ordenou
- As gê três em rajada
outras pacaças com crias, o macho que guiava o grupo mais acima, atento, raspando
o chão, o meu pai para a minha mãe - Deixa-o em paz
com os óculos a insistirem um momento e a desaparecerem magoados, sem as lentes
a sua cara nua mãezinha, a recuar perdendo feições, que é do seu nariz, da sua boca,
das sobrancelhas plantadas ao acaso na testa, o apontador de metralhadora articulava
o tripé no banco do unimogue com o municiador a ajudá-lo com a fita, uma noite palavra
de honra e que grandes noites em África, não pequenas como na aldeia, enormes, com
o silêncio prestes a rasgar-se em mil ruídos, um silêncio ensurdecedor que nos impedia
de nos escutarmos embora déssemos por qualquer galho sem peso que tombava na
terra, uma noite palavra de honra descobri uma leoa agachada, que já nem corria, a
bocejar no capim e os mabecos em torno sem que ela os afugentasse, o jazigo do meu
pai o segundo da primeira fila a contar de cima ou seja exatamente onde a serra começa,
entre o jazigo e a serra um muro e logo depois árvores altas no vértice das quais, a partir
de novembro, nascem as trovoadas cambulhando por ali abaixo que se desfazem em
estrondos de piano cujas teclas se quebram numa chuva de notas, de cordas que se
rompem e de martelos partidos, a minha mãe a rezar a Santa Bárbara Virgem, com o
lenço perdido na mão - Meu Deus
acendendo uma velinha junto à pagela, o meu pai a espreitar o capitão em África, a
minha mulher tão nova nesse tempo, sem pedra alguma, no dia vinte e quatro de cada
mês, aquele em que nos casamos, a camisa das rendas, o corpo em concha, o braço no
meu pescoço e não fazia mal que a luz apagada porque o candeeiro da rua alumiava um
bocadinho o quarto, porque um galho de tipuanas quase contra a janela, porque
nenhuns passos nem nenhuma voz no andar de cima, nenhum estalo de móveis,
nenhum ruído de canos, apenas o eco de cada gesto teu, apenas as tuas pálpebras
descidas, apenas o nosso medo um do outro, apenas a minha mãe a observar-me - Rapaz
apenas eu a tentar convencê-la - Juro que não engordei senhora
apenas o meu sangue com tanta força nas têmporas, o meu desejo, o meu pavor, não
vamos morrer nunca pois não, apenas tu a ensinares-me o que eu não sabia que sabia,
não sou capaz, vou ser capaz, não sou capaz, sou capaz, os teus joelhos, os teus pés, o
milagre vivo dos teus pés primeiro longe e depois quase junto à minha cara, e depois
nos meus ombros, e depois no meu peito, e depois junto à minha cara de novo, e depois
tudo a crescer e a esvaziar-se, a crescer e a esvaziar-se, a crescer e a esvaziar-se, e depois