António Lobo Antunes - Até Que as Pedras se Tornem Mais Leves Que a Água PT (2017)

(Carla ScalaEjcveS) #1

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E quando a coluna de reabastecimento não chegava devido a uma ponte que os
turras dinamitaram ou um ataque ou assim, faz-me impressão esta aldeia sempre mais
deserta, estas casas vazias quase sem telhas amontoando-se no interior de si mesmas
com a erva a crescer nos intervalos das tábuas do sobrado e um gato a espreitar-nos
antes de fugir, sem janelas nem portas, às vezes uma a bater não se sabia onde, para cá
e para lá apesar de nenhum vento e eu com medo dos mortos à minha procura por aí
segredando o meu nome, quando a coluna de reabastecimento não chegava, antes de
comermos os cães ou nos comermos uns aos outros, mandávamos vir um par de
unimogues, colocávamos um rádio num deles e um apontador de metralhadora no
segundo e saíamos do arame farpado na esperança de caçar veados ou pacaças, não
pelos trilhos claro, a corta mato no capim e nas chanas de motores aos gritos,
percebiam-se as barracas das companhias a distanciarem-se de nós por um luar de
gasóleo que se ia tornando mais tênue, eu à direita do condutor e uma seção atrás de
mim a sacudir-se desamparada do banco enquanto o unimogue galgava desníveis,
relevos, fossas, de súbito luzitas de olhos mas eram bichos pequenos ou árvores
disformes cujas folhas brilhavam, ainda bem que o meu pai faleceu sem assistir à morte
da aldeia, lá está ele no cemitério ao cuidado da minha prima que o cumprimenta
sempre



  • Tio
    quando limpa o jazigo embora converse mais com a minha mãe claro, tenho a certeza
    que apesar de uma fora e outra dentro do mogno não lhes falta assunto, eu por exemplo

  • Está bem o rapaz?
    a minha mãe que se lá entro nem pia, de longe em longe, e é um pau, borbulha no
    caixão soprozitos de ossos, que mais possui agora coitada, ossos e um vestido que o
    tempo desbotou de certeza, nenhuma vassourita lhe fica para se varrer a si mesma da
    nossa memória, acocorada num banco do quintal a coser sob a nespereira, falando
    conosco sem levantar os óculos, eram os olhos que saíam do vidro, muito mais pequenos
    que através das lentes, mirando-me a barriga com desgosto

  • Engordaste
    porque desde que bati a asa e sem o seu amor vigilante a regular-me a vida comecei
    uma triste e irreversível espiral de declínio e miséria, a minha mulher não consegue fazer
    da mesma maneira os pratos que eu gosto, não me impede tão bem as gripes com
    sopinhas de vinho e não são apenas as sopas, é a forma como a gente se dá, ela ou seja
    a velhota não entende que o segredo está na forma como uma pessoa nos obriga a
    comer, o meu filho que sempre foi muito sensível compreende, pegando-lhe pelo lado
    da infância faz-se dele o que queremos, a minha mulher sempre atenta

  • Amor
    a acenar enquanto eu, apontando a minha mãe, a designava numa careta de

  • Coitada
    e a minha mãe logo a saltar dos óculos

  • Aposto o que te apetecer que o idiota a fazer-me caretas rapariga

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