António Lobo Antunes - Até Que as Pedras se Tornem Mais Leves Que a Água PT (2017)

(Carla ScalaEjcveS) #1

encorpar-se preparando o salto, de quadris mais altos que o focinho, o meu pai de olhos
fechados com medo dos estrondos a ordenar à tropa



  • Cessa o fogo cessa o fogo
    ao mesmo tempo que a perdiz desaparecia de súbito, a minha mãe na cozinha para
    Sua Excelência

  • Dois dias não é assim muito tempo
    numa voz que demorava a chegar às palavras, pronunciando-as quase sem lhes tocar,
    já vi pianos assim que cantavam sozinhos, já vi miúdos chorarem sem soluços nas
    sílabas, só as pálpebras falavam, a minha irmã no jardim a aproximar-se, como em
    pequena, de uma lagartixa no muro que se sumiu numa fresta, a cadela trouxe a perdiz
    que agitava as asas ainda e o meu avô pendurou-a pelo pescoço de um gancho à cintura,
    vi o vizinho dele, um viúvo sem família, enforcado assim, de cabeça à banda, junto ao
    teto da cave a girar, a girar de chapéu com palitos na fita, um sapato a girar também
    sobre o chão de cimento e o segundo descalço, de banda, como um animalzito ferido,
    Sua Excelência

  • Que horror
    de gê três na mão, esquecida de mandar incendiar os últimos quimbos, esquecida de
    sentar-se no unimogue e fugir dado não fossem os turras aparecerem do rio, o vizinho
    do meu avô para o meu avô, a alargar um bocadinho a corda do pescoço

  • Essa quem é?
    enquanto a minha mãe respondia por ele

  • A nossa nora senhor Barros
    com o sapato de banda a examiná-la tão crítico

  • Podia ter arranjado melhor
    porque o cabelo mal pintado de loiro, porque o colar não jogava com o vestido,
    porque detestava a aldeia

  • Assim que o porco morrer vou-me embora daqui
    saudosa de um lugar sem perdizes nem estevas nem cadelas idosas, quase cegas de
    um olho, a babarem-se em torno de um pássaro morto, o meu avô para o meu pai

  • Vocês lá em África tinham rafeiros para vos trazerem os mortos?
    ou deixavam-nos nos quimbos, no meio das cinzas, para que os insetos os comessem
    ou os mabecos, ou as hienas, Sua Excelência a observar a máquina do café numa voz
    intrigada de menina que quase me fazia gostar dela

  • Porque é que as coisas nas montras são mais bonitas do que quando as temos em
    casa?
    a ajudar a mulher sem mãos a colocar a mandioca na esteira e nisto lembrei-me das
    mangueiras cheias de morcegos e de uma cabra grávida que alguém afastava com o
    calcanhar, não me lembro de falarem comigo, lembro-me da chuva ao longe mas
    misturada com ruas e casas, nenhuma galinha minúscula, nenhuma cobra, onde estou
    eu afinal, palancas trotando para o rio, soldados de joelhos a sacudirem areia em torno
    de uma mina, a minha mãe a mudar de posição, com uma careta, no banco, o meu pai

  • Sentes dores agora?

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